O aposentado Gilberto Luciano Belloque tem aquele 15 de agosto de 1969 ainda bem vivo na memória. Foi o dia em que ele, aos 24 anos de idade, e outros nove jovens guerrilheiros armados tomaram a Rádio Nacional, em Diadema (SP), emissora afiliada da Globo que tinha uma das principais audiências do país, para ler, às 8h30 da manhã, um manifesto assinado pelo líder revolucionário Carlos Marighella (que morreria assassinado por agentes do Estado em novembro daquele ano). A voz empostada era de Belloque. Por 40 minutos, o grupo fez rodar a mensagem que começava assim: “Atenção! Está no ar a rádio libertadora! De qualquer parte do Brasil, para os patriotas de toda a parte. Rádio clandestina da Revolução”.
O homem septuagenário defende que, naquele contexto, era necessário fazer a mensagem da revolução ser ouvida em dias de restrição absoluta de informação. “Foi uma saída que a gente planejou para fazer uma divulgação que não se conseguia fazer por vias normais. A imprensa estava toda censurada. A censura já estava estabelecida no país, o AI-5 (Ato Institucional número 5) editado”. Ele não se arrepende da ação, mas entende que a luta armada só fazia sentido naquele momento. “Eu só dei um tiro uma vez na vida, e foi numa advertência em outra operação. Muito raramente havia algum tiro nas ações”, recorda. O estudante de engenharia acabou tendo que abandonar a faculdade por conta da clandestinidade e ficou preso político por seis anos. Quando saiu da cadeia, refez a vida, foi cursar administração de empresas, chegou a ser filiado ao PSDB e se afastou da política. Belloque, hoje, tem história de sobra para contar para filhos, netos e amigos sobre a transmissão à força na Rádio Nacional e de uma trajetória que sempre o revisita.
Confira abaixo a entrevista completa
O que significa para o senhor 50 anos passados daquele evento? Como o senhor vê hoje o que aconteceu em 15 de agosto de 1969?
Gilberto Belloque – De certa forma, há um certo desânimo porque aquilo foi uma luta pela democracia, para restabelecer um governo democrático popular, mas que depois de alguns anos se assumiu formas de envolver mais a população e a gente conseguiu depois restabelecer a democracia. Foi um processo lento, gradual, mas em 1988 tivemos uma constituição democrática. Hoje a gente vê um certo retrocesso. Alguns sonham em estabelecer aquela ditadura que vivemos naquela época. Acho que todas as forças civilizadas desse país têm que se unir para barrar essa onda de obscurantismo, de retrocesso que está se abatendo sobre nós. Há uma pregação muito grande da violência, e isso é terrível, porque pode levar a uma radicalização e, em última instância pode polarizar de tal forma que esse país entre em uma escalada de violência, e isso não interessa a ninguém.
O que o senhor lembra do dia 15 de agosto de 1969?
Gilberto Belloque – Puxando pela lembrança, afinal já faz 50 anos… (risos). Quando nos propusemos a fazer aquela ação, foi uma saída que a gente planejou para fazer uma divulgação que não se conseguia fazer por vias normais. A imprensa estava toda censurada. A censura já estava estabelecida no país, o AI-5 editado. Qualquer deputado que se manifestasse mais forte de maneira oposta ao governo, era cassado. Os juízes não podiam julgar com imparcialidade porque seriam cassados e aposentados. Professores nas universidades eram afastados, enfim, você não tinha liberdade de expressão nenhuma, então a tomada da Rádio Nacional era uma forma de expressar uma oposição de forças que se opunham ao regime e então a gente planejou aquela ação para fazer isso. Obviamente você tinha que ter impacto, tinha que procurar um meio, uma mídia, que era na época a mais popular, a mais ouvida.
As emissoras de rádio da época tinham as maiores audiências. Do ponto de vista da ação militar, foi um negócio muito simples. A gente objetivou tomar uma emissora, e isso ficava numa zona afastada da cidade, onde facilmente você poderia fazer uma operação e depois as fugas com muita segurança. Apesar de serem ações guerrilheiras, a gente procurava evitar o conflito, sempre tentando evitar feridos. Nas nossas ações, a gente procurava evitar derramamento de sangue e, quando ocorreu, sempre foi um efeito não desejado. A tomada da rádio, do jeito que foi planejada, foi feita com muita segurança. Apesar de toda a repercussão que teve, foi muito tranquila.
Perdemos entre 300 e 400 companheiros. Poucos foram em combate. A maioria era presa, torturada e assassinada. Acho que a luta hoje tem que ser de todo mundo para defender a democracia. Temos que ter um processo político e uma nação civilizada.
Como era a relação do senhor com Marighella?
Gilberto Belloque – Nossa experiência de convivência foi muito pouca, porque na clandestinidade você não tem muito contato, mas tive alguns contatos com ele. Era uma liderança política, tinha mais idade que a gente na época. Ele tinha quase 60 e nós éramos jovens de 20, 30 anos no máximo. Ele era uma pessoa que vinha desde a luta contra o estado novo do Getúlio Vargas, tinha sido deputado, enfim… tinha uma experiência de vida e política muito forte. Era uma presença muito significativa nas forças de oposição ao regime. A maioria dos guerrilheiros era muito jovem.
Ele era uma pessoa que tinha um carisma, uma dedicação a causa popular muito grande. Tinha uma visão que era muito importante. A luta contra a ditadura não era exclusiva da esquerda, tinha que abranger todas as forças democráticas. Ele não propunha implantar o socialismo, mas sim um governo democrático, popular. Era um programa de libertação nacional e ele deixava isso muito claro. Era um programa para livrar o país da dominação estrangeira e das forças mais retrógradas. Não tinha a intenção de implantar o socialismo.
Nesse episódio da rádio, a voz é do senhor. Esse manifesto entrou para a história. Como o senhor o relê? E como o senhor recebe as manifestações de parte da população pela volta da ditadura?
Gilberto Belloque – Acho que o manifesto era muito conjuntural, era da época. A gente estava numa época em que o congresso estava praticamente manietado, os partidos tinham sido extintos, foram criados dois partidos artificiais, você não tinha luta política, não tinha eleição para cargos do executivo, apenas para deputados, e mesmo assim de uma forma muito controlada. O mundo estava conflagrado, com países socialistas de um lado e capitalistas do outro. No Brasil, o capitalismo ainda tinha muito de latifúndio, de relações pré-capitalistas no campo, então o manifesto, hoje, não teria condição de ser assumido. Algumas até continuam válidas.
E o senhor se arrepende?
Gilberto Belloque – Não, de jeito nenhum. Lutar contra a tirania é um dever. É uma honra ter lutado contra a tirania. É um dever de todo o cidadão. Obviamente você tem que usar a tática. Não pode dar murro em ponta de faca, não pode ter uma posição vanguardistas, se não acaba sendo esmagado. Isso é a maioria da população, o povo que tem que fazer, sejam os mais desfavorecidos, mas inclusive a classe média tem que se mobilizar contra o arbítrio, a falta de liberdade.
E essas homenagens à ditadura nos dias de hoje?
Gilberto Belloque – Isso é uma excrescência, é um absurdo total. É a mesma coisa que homenagear Hitler, Mussolini, torturadores… é o fim da picada. Nossos heróis tem que ser gente que luta pela paz, pela democracia, pela fraternidade, pela igualdade entre os homens, pelo respeito aos direitos humanos, isso que é decente, civilizado. Isso que está sendo dito hoje é uma verdadeira barbárie.
Depois daquele dia, o que acontece com o senhor?
Gilberto Belloque – Permaneci em São Paulo. Fui preso em março de 1970 por conta da minha militância e não apenas por causa daquela ação.
E houve tortura?
Gilberto Belloque – Muita. Isso era sistemático. Todos que iam contra o regime eram torturados. Foi o caso do Vladimir Herzog. Um homem que nunca usou da força foi preso, torturado e morto. A partir de 71, 72, as lideranças maiores eram presas, torturadas e mortas sistematicamente. Perdi muitos amigos, companheiros. É uma coisa que lamento muito. Eram pessoas maravilhosas, generosas e que hoje teriam muito para contribuir com o processo político brasileiro. Muitos foram mortos e muitos estão desaparecidos. As famílias não conseguiram seus corpos.
Quanto tempo o senhor ficou preso?
Gilberto Belloque – Fiquei 6 anos preso. Depois disso, voltei para a universidade, fiz vestibular, ingressei na USP e fiz o curso de administração.
O senhor conta para sua família essas histórias? Eles perguntam muito?
Gilberto Belloque – Perguntam, né? O meu passado é de conhecimento de todos os meus amigos, mas depois que cursei administração o país voltou a se normalizar
Por Vinícius Heck
Supervisão de Luiz Claudio Ferreira