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Da sapatilha à pele: bailarinas negras reclamam de racismo

Faltavam poucos minutos para entrar no palco e a ansiedade tomava conta de mim. Não era algo novo, porém o mesmo sentimento sempre toma conta quando estava prestes a dançar para o público. Observo o ambiente ao meu redor com olhos que exalavam nervosismo e chego a uma conclusão triste. Eu era a única negra ali. Isto me fez pensar “como posso ser a única negra no meio de trinta pessoas?” 

No ano de 2018, fiz amizade com uma bailarina negra que mora em Santos (SP). Fiquei animada com a nova amizade e por ter, pela primeira vez, uma amiga bailarina negra também. Meu coração dói apenas ao lembrar deste fato. Isto não deveria ser algo incomum, muito menos algo a ser comemorado. A presença negra na sociedade não deve ser comemorada. 

Apenas após 200 anos da criação das famosas sapatilhas de ponta no ballet, a marca Freed of London lançou, no ano passado, uma coleção especial com sapatilhas feitas com variados tons de marrom para pessoas negras. Usualmente, as sapatilhas utilizadas são de tonalidades claras, como rosa e branco. 

A coleção de sapatilhas inovadoras abriu o debate de como bailarinas negras as utilizavam antes do lançamento de outros tons de pele. 

Antes disso, os bailarinos pintavam as sapatilhas com base de maquiagem para deixar a sapatilha na tonalidade certa de sua pele. Esta é uma técnica trabalhosa e que causa mais despesas pois a maquiagem na sapatilha diminui a sua durabilidade, que são caras por si só. A faixa de preço das sapatilhas de ponta gira em torno de R$130, em marcas mais acessíveis como a Capezio, até R$ 800, em marcas mais renomadas como a Gaynor Minden. 

A bailarina brasileira negra Ingrid Silva, hoje dançando nos Estados Unidos  conta um pouco da revolta com o descaso das marcas de sapatilha de ponta para com as pessoas negras. “Acho que as marcas estão super atrasadas e que já deveriam ter feito as sapatilhas. A desculpa é que não tem mercado. Eu discordo, por exemplo o Dance Theatre of Harlem já está ativo há 50 anos e desde então, seus bailarinos sempre coloriram as sapatilhas até recentemente”, analisou. 

A foto acima é do instagram da bailarina Chyrstyn Mariah, que atualmente é solista no Boston Ballet, nos Estados Unidos. Ela mostra a dificuldade e o processo necessário para alcançar a tonalidade certa na sapatilha. Para pintar cada par, bailarinos contam que gastam no mínimo uma hora. 

Uma bailarina de Minas Gerais que pediu para o site “Primeira Impressão” para ter sua identidade preservada, relatou que pintava as sapatilhas também para apresentações quando necessário. “Eu ainda faço isso porque essa (sapatilha) ponta que saiu em outros tons são de marcas mais caras.” 

O lançamento das sapatilhas para negras ajudou a confirmar um fato recorrente que existe no meio da dança: o racismo. 

Realidade quase impossível 

Em 2016, participei de um workshop da renomada escola de ballet russa Bolshoi. Assim que cheguei ao local, já havia percebido uma aura diferente, um ar pesado e me senti como um filhote no meio de tigres. Senti que não pertencia àquele lugar, mesmo sendo bailarina. Parte de mim ainda acredita que seja pela diferença aparente de condições financeiras entre eu e as meninas que estavam ao meu redor. 

A aula começa e rapidamente me posiciono no fundo da sala, sentindo todos os olhares das meninas pesarem nas minhas costas. Era mais um episódio normal onde eu era uma das únicas, se não a única negra no local. Outro fato que me deixava intimidada com tudo era a diferença econômica entre eu e as outras. Todas com sapatilhas limpas e novas, e eu com a minha usada por 2 anos, quase rasgada. 

“Minha formação como bailarina clássica aconteceu em uma escola de ballet de bairro localizado em região periférica, mesmo local onde morei por toda a vida”, diz a bailarina mineira entrevistada em seu projeto de pesquisa para faculdade de antropologia. Dados apontam que 57% da população negra brasileira se encontra nas regiões de periferia. 

De volta ao workshop, a professora se posicionou na frente da turma e começou a passar os exercícios. Eu a analisava com cuidado, observando sua figura. Alta, esguia, branca, sem nenhuma curva. Olho ao redor e percebo a semelhança que ela e muitas meninas possuíam. Olho-me no espelho e sinto meu coração pesar ao perceber que nem a unha do meu mindinho era parecido com o dela. Ingrid Silva explica  que nunca sofreu ações de preconceito de forma direta, mas que acontecia de forma velada. 

Ingrid Silva, bailarina do Dance Theatre of Harlem (Foto: Steven Vandervelden)

“Não verbal, mas sei bem como é com olhares e posições no mundo da dança quem sabe sabe. Muitas das vezes racismo é velado”, respondeu a jovem. A resposta rapidamente me lembra do que passei no workshop e de como muitas vezes o racismo é normalizado a ponto de ser tido como algo normal. A bailarina ainda comenta sobre as mudanças necessárias para que o racismo diminua na dança. “Eu acho que tudo começa com as companhias, elas têm que pensar que elas refletem o mundo. O mundo é cheio de diversidade e é isso que público quer ver no palco. Desta forma, mais oportunidades e portas se abrem e isso seria uma maneira de diminuir racismo.” 

A companhia a qual ela faz parte é uma das faces do grande avanço contra o racismo dentro da dança. O Dance Theatre of Harlemlocalizado nos Estados Unidos, é uma companhia de dança em que a maioria de seu elenco conta com bailarinos negros atuando. A qualidade artística da companhia é tão boa quanto a de grandes escolas que não possuem nenhuma pessoa negra no seu grupo principal. 

As grandes companhias de ballet, como a Escola Bolshoi e a Vaganova Academy (Rússia) e a The Royal Academy (Reino Unido), não possuem nenhuma bailarina principal negra. Nos balés de repertório que já foram gravados DVD’s, nenhuma das bailarinas em destaque foge do padrão corporal europeu pré-estabelecido. “As companhias de ballet profissionais hoje ainda são de maioria branca. Uma criança negra bailarina não se vê lá na frente como uma imagem a se inspirar e sonhar em ser”, afirma a bailarina de Belo Horizonte. 

O fato colabora para a perpetuação de uma imagem limitada e preconceituosa no ballet. “Pessoas de fora estão acostumadas a associar bailarinas com meninas: magras, de certa altura, sem peito ou bunda. E realmente por muito tempo foi assim em alguns países estrangeiros”, diz a bailarina paulista, Lanay Nunes, de 19 anos. Ela também expressa felicidade ao contar que tem visto bailarinas diferentes ganhando destaque no mundo da dança. “Há mudanças ocorrendo e isso me faz muito feliz, pois o mundo está percebendo que não é necessário ter um tipo de corpo para dançar. É necessário ter um corpo e querer dançar.” 

“Um bailarino negro muitas das vezes não tem oportunidade não por capacitação, pois eles são talentosos, mas sim porque a companhia que ele está ou quer entrar não tem tanta diversidade no grupo de bailarinos”, destaca Ingrid. 

“Tem muitos problemas que contribuem para a maioria branca no ballet. A carreira e tudo que é envolvido para chegar no nível profissional envolve investimento alto em dinheiro. Sapatilha, preparo físico, fisioterapia para evitar lesão, nutricionista. É uma vida toda voltada para isso. Bailarinas que viajam pro exterior para entrar em companhias têm apoio financeiro da família. Essa realidade é incabível para uma menina numa escola de ballet na periferia. É possível? É. Mas é infinitamente mais difícil. A questão social está diretamente ligada na questão racial”, comenta a bailarina, que é estudante de antropologia. 

Dos palcos para a vida 

O racismo na dança não está presente somente em ambientes profissionais ou específicos para a dança, ele ocorre em qualquer lugar. O diretor e bailarino da Companhia de Dança Transições, Lehandro Lira, contou que foi vítima de  racismo. “Há alguns anos, sofri preconceito na igreja por ser negro e por ser um homem que dança.” 

O bailarino Lehandro Lira em apresentação no Aniversário de Planaltina, DF (Foto: Mayariane Castro)

Pequenos atos, como apenas um olhar, feitos com frequência causam danos com o passar do tempo. O racismo está presente até nos atos mais simples e pequenos, nunca é muito escancarado pois ninguém quer ser chamado de racista. “Quando eu tinha 13 anos, fiz um curso de ballet de férias e eu estava entre as melhores. No último dia, veio a Globo ou a Record gravar e escolheram as ‘boas’, porém todas as escolhidas eram brancas”, relembra a bailarina mineira.

Por Mayariane Castro

Supervisão de Luiz Claudio Ferreira