A virtual aprovação da Reforma da Previdência no Senado pode impactar brasileiros de diferentes faixas etárias. Uma delas, porém, traz reflexos imediatos, os idosos que, por não terem registro o suficiente, ainda necessitam de mais tempo de trabalho com carteira assinada. A dificuldade é porque, com o país em recessão, os trabalhos disponíveis nem sempre apresentam condições sonhadas ou adequadas para quem já passou dos 60 anos de idade.
Os pés molhados, o rodo pesado, um balde e força de vontade marcam a rotina de trabalho de Fátima Farias, 61 anos. A idosa trabalha desde maio de 2018 na área de serviços gerais da Rodoviária do Plano Piloto. Ela é engenheira agrônoma. Iniciou o curso na Universidade Federal do Ceará (UFC), em Fortaleza, quando tinha 24 anos e formou-se nos anos 2000. Demorou seis anos para concluir, pois precisou trancar para cuidar da mãe. Fez estágio na Embrapa no período de 1997 a 1999.
Ela já atuou também em projetos do Ministério do Desenvolvimento Agrário e do Ministério do Trabalho. Nascida em Pacoti, distante 96 quilômetros da capital cearense, veio de ônibus para Brasília, em busca de melhoria de vida, um ano depois de concluir o curso. Por enquanto, ela precisou trocar os cálculos da engenharia, pela companhia da vassoura e a água molhando seus pés e olhos. Histórias de idosos na área de serviços gerais chamam a atenção para a falta de emprego e pela falta de assistência adequada no momento em que a pessoa já deveria estar com os esforços em uma marcha mais leve.
Ela começou a trabalhar na área de serviços gerais, aos 15 anos, para conseguir estudar. De origem humilde, filha de mãe dona de casa, Maria Chaves, lembra com carinho da matriarca e pai, José Raimundo de Farias, mestre de obras, falecido em 2004. Garante que, apesar das dificuldades, nunca teve a experiência da fome. “Quem tem coragem de trabalhar não passa necessidade”, afirma. Apesar da coragem, ela sente dores no corpo por causa do trabalho pesado.. Na época, ela vivia no bairro de Parangaba, em Fortaleza, com os pais e duas irmãs.
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Desde que Fátima Farias começou a entender que deveria fazer uma faculdade, ela escolheu agronomia. “Eu gostava muito de animais, da fazenda. Ai eu pensei, esse é o melhor curso que eu tenho para fazer e aí fiz.” Porém, ela diz não ter feito a escolha certa. “Meu pai não queria que eu fizesse (engenharia agronômica), ele queria que eu fizesse civil, porque ele achava que agronomia não tinha nada a ver comigo. Por ele ser mestre de obras, queria que a filha trabalhasse no mesmo ramo que ele. Me arrependo, se eu tivesse feito o que ele pediu, hoje eu estava numa boa, eu tenho certeza que estaria melhor”, completa.
Aos 10 anos, ela perdeu a audição de um dos ouvidos. Mais de 85% foi comprometida. Ninguém da família ou da escola sabia que Fátima Farias tinha problemas para ouvir. “Eu era muito viva, lia os lábios das pessoas para poder entender o que as pessoas estavam falando”. Tudo ocorreu por causa de uma infecção que inflamou logo. “Meu ouvido ficou inchado e surgiu uma bola para fora. Doía muito. A bola estourou e eu fiz a cirurgia, mas nada de melhorar”, lembra. Aos 18 anos, no Ensino Médio, ela começou a usar o aparelho auditivo.“Não atrapalha em nada, melhorou foi muito a minha vida”.
Ela trabalha em meio a ônibus e passageiros, local em que a limpeza passa despercebida por quem transita apressadamente pela rodoviária. O chão limpo, as baias sem lixo e o banheiro em ordem são fundamentais para que a convivência e a qualidade de vida das 700 mil pessoas que passam no local para trabalhar e estudar, diariamente, sejam preservadas no ambiente.
Mãe de dois filhos, que ficaram na cidade natal, casou-se com um homem que conheceu na capital federal, ainda em 2001. Com experiência na área de serviços gerais, antes de iniciar na Rodoviária, Fátima Farias exercia a mesma função na Escola de Música de Brasília. “Eu entrei em agosto de 2016 lá na Escola e fui removida para cá, em maio”, explica.
A rotina parece ser pesada. Ela mora no Itapoã, distante 15 quilômetros do centro de Brasília e do local de trabalho dela, e uma das regiões administrativas com mais desigualdade da capital. Fátima Farias chega em casa às 8h30, depois de uma noite intensa de trabalho que começa às 19h e só termina às 7h.
Às 19h, as 70 pessoas que trabalham na limpeza da rodoviária durante o período noturno, chegam para mais um turno de labuta. Ao todo, são oito plataformas, incluindo o mezanino, que passam pela limpeza mais leve, coleta de papéis e garrafas. O grupo de funcionários se divide para cumprir as tarefas.
O horário de descanso da engenheira é das 21h às 22h. Ela aproveita o tempo para lanchar. Suco de limão com um salgado é o cardápio mais apreciado pela trabalhadora. Nos melhores dias, é o jantar dela. Quando o fluxo de passageiros e as linhas de ônibus começam a encerrar o itinerário, a partir das 23h, é a hora da limpeza mais pesada.
A copa dos funcionários da empresa é localizada em uma sala de entrada exclusiva para funcionários. O almoxarifado também é restrito e a placa pendurada nas grades amarelas de pintura desgastada avisa: “Por favor, não entre. Obrigada!!!”. O espaço armazena os produtos e materiais utilizados na limpeza.
Meia-noite, chão inteiro
Sabão em pó, desinfetante e água sanitária se misturam com a água captada em um tanque branco e simples localizado na sala exclusiva. A partir da meia-noite, é chegada a hora de esfregar o chão. Com um rodo, uma vassoura e o balde, ela começa a limpeza. Ela joga a água misturada aos produtos, rapa a sujeira e o processo se repete. Leva a água para um lado, depois volta. O piso começa a ganhar brilho.
A principal função dela é lavar a rodoviária, que começa à meia-noite e demora cerca de quatro horas, sem paradas, por ser o horário em que o local é menos frequentado e menos pessoas aguardam os ônibus nas paradas. “A gente esfrega o chão, joga água, recolhe com o rodo e depois passa a cera. É trabalho pra caramba”, explica.
Fátima Farias trabalha num regime de 12 horas de serviço por 36 de folga . A jornada não acaba quando ela chega em casa, pois descansa, dorme um pouco, depois arruma a casa e estuda para concurso. “Já estou inscrita no concurso na Novacap , na minha área. O meu maior sonho é exercer a profissão de engenheira agrônoma, na área de projetos. E eu vou conseguir, porque estou estudando para isso, me dedicando, mesmo com a dupla jornada que tenho”, destaca. Ainda faltam dois anos para ela se aposentar.
Uniforme laranja, piso brilhante
Faça chuva ou faça sol, a tímida Maria de Fátima Rocha de Lima estará nas quadras 900, na Asa Sul, exercendo o ofício que tem pouco visibilidade. Ela é gari e já trabalha na atividade há seis anos. Antes de labutar pelas ruas do Distrito Federal, ela morava na cidade natal, Buíque (PE), distante 282 quilômetros de Recife. No sertão pernambucano, Maria de Fátima morava com duas irmãs, três irmãos e os pais, em um fazenda. O sonho dela era aprender a ler escrever, mas pelas dificuldades não teve oportunidade. “Meu pai não deixava eu estudar, eu tinha que trabalhar.” Lá ela ordenhava as vacas e ajudava a mãe nos serviços de casa.
No meio de entrevista o celular dela toca, mas não consegue desligar. Fica nervosa. Lamenta que não consegue ler o letreiro do ônibus, nem o livro, nem o futuro. O telefone não para de tocar. Ela atende preocupada, pois além de trabalhar nas ruas, ela cuida do ex-marido que voltou para casa desde que descobriu estar um câncer. Na casa, vivem seis pessoas. Ao chegar à Brasília, na década de 1990, começou a atuar na área de serviços gerais do Hospital das Força Aérea de Brasília (HFAB). Ficou por lá durante 12 anos. Perdeu o emprego e foi tentar a vida como doméstica. “Eu fui trabalhar na casa da colega de minha filha, pra não ficar desempregada. Trabalhei por 3 anos lá”.
Mãe de um casal brasiliense e divorciada, ela mora no Gama. O ex-marido, que está doente, com câncer, voltou a morar com Maria Fátima, que mesmo aposentada luta todos os dias para conseguir completar a renda. O dia da trabalhadora começa cedo. “Eu acordo às 4h, porque às 5h o ônibus da empresa já me busca na parada,” explica. O expediente começa às 6h e vai até as 13h30, de segunda a sexta-feira. Aos sábados, acaba em média 1 hora mais cedo. “Eu chego, arrumo o carrinho e vou trabalhar. O que tiver na frente eu vou recolhendo, nós vamos pegando tudo”. Sorrindo ela finaliza. “Eu amo o que eu faço, não tenho nada para reclamar”, completa. A hora do almoço é por volta das 11h. Quando ela chega à noite do trabalho ela faz a marmita para comer no outro dia. “Eu podendo comprar, eu como tudo com a graça de Deus”.
Venceu a depressão
Espeto em uma mão e o saco de lixo na outra, sem esquecer da mochila nas costas. Natalino Vieira de Farias, 63 anos, outro idoso responsável pela limpeza do DF, não para nunca. Entre carros e meio fios, vestindo uniforme laranja, ele faz a limpeza do percurso da 716 Norte, começando por um supermercado e seguindo até a movimentada Estrada Parque Indústria e Abastecimento (Epia) Norte. O vai e vem é diário. E ele a pé entre os motores e fumaça dos escapamentos. Desviar dos perigos das ruas é como uma metáfora do que já foi a vida dele. “Vou recolhendo de um lado da pista e volto pelo outro. Se não der tempo de terminar, começo de onde parei no outro dia,’ explica. O nordestino tem família grande. São nove filhos, 27 netos e esposa. Ficou órfão de mãe aos nove anos, viu o pai casar-se com outra mulher e decidiu mudar de casa para morar com o tio.
Com apenas 18 anos chegou pela primeira vez na capital federal. Nada deu certo. Voltou para a cidade natal, casou-se no “dia 2 de dezembro de 1978”. Ele fez questão de lembrar a data exata do matrimônio. Já com a família constituída voltou para o DF, em 2009, de Coribe (BA), distante 931 quilômetros de Salvador, porque estava doente. “Eu estava doente, entrei em depressão e vim para Brasília tentar me curar”, relembra. Natalino Vieira começou a trabalhar como gari há 6 anos e para o profissional, o emprego o ajudou a se curar. “O meu problema de saúde melhorou, mas a gente nunca fica totalmente são”, frisa.
Antes do sol voltar a nascer, Natalino já está de pé. Ele acorda às 3h, pega um carro e dois ônibus, todos os meios de transporte são oferecidos pela empresa a qual ele trabalha, apenas para chegar no destino final.“Meu serviço é catação. Recolho papel, garrafas de refri e de vidro, qualquer lixo que aparecer. Eu chego às 6h, tomo café e vou pra labuta,” explica. Ele faz a rota das quadras 700 da Asa Norte. O maior sonho de Natalino Farias é conseguir quitar a casa que comprou. Ele dividiu as parcelas em 30 anos, desses, quatro já foram. Graças ao emprego, segundo ele, conquistou a residência própria. “Hoje eu moro em Águas Lindas. Comprei a casa em 2014 e estou morando lá desde 2016”, comemora. Quer deixar o bem para os filhos. Mas até lá quer trabalhar, sem parar.
Aposentadoria: risco para garis
Para a presidente do Sindicato dos Empregados em empresas de asseio, conservação, trabalho temporário, prestação de serviço e serviços terceirizáveis no Distrito Federal (Sindserviço) Maria Isabel Caetano dos Reis, que está no cargo há 16 anos e possui o primeiro grau incompleto, a questão de garis idosos aposentados, ainda trabalhar é divergente.
“Esse funcionário pelo menos tem um salário garantido e quando fica o aposentado que tem um padrinho (na empresa) ou qualquer coisa assim, ele tira um trabalhador que não tem não tem de onde tirar o sustento dos filhos”, afirmou. Ela completa que . essa “ Então, essa é uma questão muito complicada. Quando a empresa ganha o contrato, já vem a lista de funcionários que vai ficar e quem não vai ficar”, finaliza.
Leitura além do lixo
Segundo a empresa Sustentare, responsável pelos garis do Distrito Federal, são oferecidos cursos de alfabetização para os funcionários duas vezes por semana, no turno do expediente de graça. De acordo com o Sindserviço, ao todo são 7 mil sindicalizados do setor público, privado e condomínios. Ainda, segundo o órgão, cCerca de 35% dos funcionários que trabalham na empresa, principalmente os idosos, são semi analfabetos.
Por Isabela Guimarães
Supervisão de Luiz Claudio Ferreira