Na reunião da manhã desta sexta-feira (11), os deputados Arlete Sampaio (PT) e Fábio Felix (PSOL), membros da Comissão Parlamentar de Inquérito do Feminicídio da Câmara Legislativa do Distrito Federal, se reuniram com especialistas para debater sobre dados referentes aos casos de assassinato de mulheres no DF e políticas públicas para combatê-los.
Os pesquisadores Marcela Novaes Medeiros, psicóloga que atua no Hospital Materno e Infantil de Brasília, e Thiago Pierobom de Ávila, promotor de Justiça do Ministério Público do DF realizaram uma pesquisa que traça um perfil sobre as vítimas de feminicídio no DF entre 2016 e 2017. O estudo tem o objetivo de identificar e analisar fatores de risco presentes nos crimes, auxiliar na elaboração de possíveis políticas públicas e na a atuação do MP.
Foram investigados os 34 casos de assassinato de mulheres em contexto de violência doméstica ocorridos no período anteriormente citado e, a partir dos dados obtidos, Novaes elencou as características em comum entre as vítimas: 35,3% eram esposas ou companheiras e 32,4% eram ex-esposas ou ex-companheiras; 29,5% trabalhavam como empregadas domésticas e 14,8% como comerciárias; já os agressores eram em maioria pedreiros, com 14,8%, e aposentados, com, 11,8%. Sobre escolaridade, houve um padrão similar, a maior parte das vítimas e agressores tinha o ensino fundamental incompleto, com 32,3% e 47,1% respectivamente. A repetição também ocorreu na renda, tanto mulheres, entre 45,4% e 53%, quanto homens, 29,4% a 47,1%, recebiam apenas até um salário mínimo.
Os resultados demonstram que mulheres que possuem menor escolaridade e que atuam em profissões relacionadas a esse fator são mais vulneráveis a feminicídios e a mesma incidência ocorre com os assassinos. Outro resultado importante é o de que, quase sempre, há ou já existiu uma relação afetiva entre os envolvidos no crime, o que é reiterado pelo motivo dos homicídios. Em 61,8% dos casos, a motivação do crime estava relacionada com a manutenção da relação afetiva entre vítimas e agressores, como não aceitar o término do relacionamento, a não aceitação do término ligado ao início de outro relacionamento, suspeitas de traição por parte do agressor ou reclamações da vítima sobre traições.
Contudo, o principal motivador é o comportamento excessivamente ciumento e controlador por parte do agressor, que foi o fator mais frequente com 88,2% de incidência. Os ciúmes apontados na pesquisa englobam várias ações, como perseguição, perturbação ou vigilância da vítima e os locais onde frequentava, com 47,1%; controle dos horários, amizades, celular e objetos pessoais da vítima, com 44,1%; e importunação através de telefonemas, mensagens e e-mails e a proibição de contato da vítima com familiares e amigos, ambos com 38,2% de incidência. Existem ao todo 23 fatores de risco estudados pela academia que serviram de base para o estudo e cada um deles esteve presente nos casos analisados. Além do comportamento ciumento, os fatores com maior incidência foram ameaça, tentativa de assassinato e agressão grave, com 73,5%, e histórico criminal prévio, com 64,7%.
Políticas públicas
Na parte seguinte da reunião, Pierobom mostrou uma apresentação sobre como os dados anteriores devem servir de base para a elaboração de políticas efetivas no enfrentamento à violência doméstica e feminicídio. Ele explicou que políticas públicas de prevenção são divididas em três categorias de acordo com a Organização Mundial da Saúde: primárias, que são preventivas e atingem toda a população; secundárias, que realizam intervenções precoces e alcançam os grupos de risco ou vítimas nos estágios iniciais; e terciárias, que são colocadas em prática após o ocorrido e funcionam como resposta ao crime.
O promotor afirmou que, atualmente, a maior parte das ações governamentais se encaixa na terceira categoria, pois se baseiam no julgamento e prisão de agressores e assassinos, no entanto, esses processos, apesar de necessários, não evitam a ocorrência desse tipo de violência. Portanto, o pesquisador argumentou que, para eliminar de forma contundente os altos números de crimes motivados por misoginia, é essencial investir em medidas preventivas que possam trazer resultados antes do início dos processos de agressão.
Como exemplo, ele citou campanhas de fomento à maior visibilidade, reconhecimento e envolvimento de terceiros em casos de violência doméstica como resposta aos dados de que em todos os casos investigados o agressor tinha histórico de outras violências, mas em apenas 23,5% houve registro prévio de denúncia policial e de que, em 55,9% dos casos, filhos, familiares e amigos já haviam presenciado as agressões. Por fim, o pesquisador afirmou ser necessária uma comissão intersetorial que investigue a fundo essas ocorrências e continue a colher dados.
“Poderíamos institucionalizar uma revisão obrigatória dos feminicídios com uma análise qualitativa que pudesse ser compilada no fim do ano e enviada à Câmara como forma de prestação de contas poderíamos aprender com esses crimes. Todos os anos temos tido esses assassinatos, ano que vem 20 ou 30 mulheres vão ser assassinadas no DF. Não gostaria que isso acontecesse, mas é algo que todo ano tem acontecido, então, não podemos deixar que essas mortes em 2019 ou 2020 passem ilesas. Precisamos aprender com elas para não repetirmos os erros passados. Todas essas mortes de mulheres foram mortes anunciadas”, finalizou.
A abordagem de Novaes e Pierobom foi elogiada por Arlete: “Essa sua divisão em níveis de prevenção é parecida com o que nós fazemos na medicina e foi muito importante, pois demonstra que não é só analisar o ato final e prender o agressor, mas estudar todo o fenômeno que leva ao processo do femincídio,” parabenizou a parlamentar.
Racismo Estrutural
“Ser negra não é um fator de risco, mas o racismo coloca mulheres negras em uma situação de maior risco”, foi assim que a pesquisadora sobre violência doméstica contra mulheres negras Bruna Jaquetto Pereira explicou o porquê das taxas de agressão e assassinatos afetarem mulheres pretas em maior número que outras mulheres.
O Atlas da Violência, produzido anualmente pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), mostra que 68% das vítimas de feminicídio são pretas e que, entre 2008 e 2018, essa taxa aumentou em 12,4%, enquanto com mulheres brancas esse número diminuiu em 11,7% no mesmo período. Esses indicadores foram refletidos no estudo de Novaes e Pierobom, que mostrou que 71% das vítimas dos casos analisados eram pretas ou pardas. A explicação de Jaqueto foi a de que mulheres negras são encaradas, por seus parceiros, como propriedades e pessoas cuja a vida tem menor valor. Nessa dinâmica, um término de relacionamento, por exemplo, se torna ainda mais inaceitável e o potencial de violência aumenta.
A pesquisadora acredita que o racismo estrutural se manifesta em várias etapas do processo de agressão, desde o relacionamento entre o casal até a denúncia e julgamento do caso. Ela argumenta que serviços de atendimento e denúncia não estão preparados para lidar com as questões raciais que fazem parte da violência contra a mulher. Como exemplo de racismo estrutural e falta de preparo técnico, questionou se o racismo é apontado em denúncias como motivação para agressões tal qual ocorre com a misoginia ou se examinadores do Instituto Médico Legal são capacitados a identificar hematomas em pele negra em exames de delito.
Jaquetto explicou que a melhor forma de obter resultados efetivos contra a violência doméstica e feminicídio é a interseccionalidade ao analisar as dinâmicas estruturais responsáveis por esses crimes. “Violência de gênero e racial não podem mais ser encaradas como categorias separadas, porém, devem ser pesquisadas de quais formas diferentes se combinam entre si e com outros elementos, como por exemplo sob a ótica de pessoas trans. Grande parte das travestis e mulheres trans que são vítimas dessa violência são negras. Desde que os dados sobre violência são colhidos, nunca há uma paridade entre as taxas de mortes de mulheres negras e brancas. Em alguns momentos, os indicadores de mulheres brancas diminuem enquanto o de mulheres negras aumenta. Para que não existam políticas públicas que protejam apenas um setor da população e deixem o outro em uma situação ainda maior de vulnerabilidade, temos que reconhecer o alcance do racismo na vulnerabilização contra a mulher e isso só pode ser feito de forma integrada entre todos os serviços e colocando mulheres negras, proporcionalmente as maiores vítimas, no centro da elaboração de políticas públicas”, contextualizou.
O deputado Felix reiterou esse posicionamento e declarou que a falta de interação entre diferentes órgãos no processo de tratamento de vítimas e agressores torna tudo mais complexo e difícil, portanto, a intersetorialidade é essencial. “Há uma raiz absolutamente racista de negar violações de direito relacionadas à etnia, sobretudo contra o povo negro, e isso está muito internalizado nas políticas públicas. Ao registrar uma ocorrência no Centro Especializado de Atendimento à Mulher, por exemplo, as pessoas não pautam a negritude como elemento central para a denúncia, mas ao olhar os dados fica óbvio que são mulheres negras que sofrem as piores violências. Há uma invisibilidade imensa. Não há treinamento profissional, há um negacionismo institucional nas políticas e gestores públicos e há uma baixa representatividade negra muito grande nos processos decisórios desse país. É preciso trazer esse elemento para o centro do debate sobre violência contra a mulher e também da formação de profissionais”, concluiu o parlamentar.
Para denunciar casos de violência contra a mulher, ligue 180 e fale com a Central de Atendimento à Mulher. A ligação é gratuita e o serviço funciona diariamente 24h por dia.
Victor Cesar Borges (estagiário)
Imagem: Reprodução/TV Web CLDF
Núcleo de Jornalismo – Câmara Legislativa