O comerciante narra que chegou sem falar português e isso dificultou conseguir trabalho durante o primeiro ano no país. “Não sabia como essa cidade funcionava, do que precisava. Minha primeira ideia era abrir uma loja”. Ammar conta que na Síria tinha uma loja de roupas, mas no Brasil abrir uma loja como essa não soou como algo tão simples, então optou por abrir um restaurante de comida árabe, na Asa Sul, em Brasília. “Sírio trabalha com tudo. Na Síria, eu tinha uma loja de roupa, aqui eu tenho um restaurante. Minha mulher cozinha e eu trabalho como garçom”, o primeiro problema para abrir o negócio foi encontrar um lugar que não exigisse fiador no contrato e conta que passou cerca de seis meses procurando um lugar para fixar o seu comércio.
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“Aqui é muito diferente. 99% diferente em tudo”, responde ele quando pergunto sobre o choque cultural. O maior, segundo ele, foi encontrar mulheres assumindo funções que no seu país são predominantemente masculinas. “No meu país mulher não precisa trabalhar porque os homens ganham muito e ninguém mais da família precisa trabalhar. Quando vim para cá, eu passei pela alfândega e todas eram mulheres. Depois, todos os donos de imobiliária aqui em Brasília, 99% são mulheres; vendedores sempre são mulheres, isso foi difícil pra mim. Mulher aqui é diferente, cabeça é diferente, mas depois a gente se acostuma a essas coisas.”
O que ele mais estranhou na cultura brasileira foi o modo que os brasileiros negociam. Comerciante nato, conta que Damasco, capital da Síria, é uma cidade muito antiga em que o comércio sempre foi muito forte, a cultura árabe é formada por uma base de comerciantes, e no Brasil, para Ammar, os comerciantes são um tanto inflexíveis nas negociações e isso foi uma das coisas que estranhou no novo país.
Ele conta que o objetivo agora, como um pai de família, é dar uma boa educação para seus três filhos. Os estudos das crianças estão nas suas prioridades: “Agora não quero outra coisa para mim, tenho que trabalhar, ganhar dinheiro para as crianças estudarem”, explica.
Da Etiópia para Petrolina
Em busca também de paz e ventos tranquilos, a etíope Brigitte Hissette chegou ao país desconhecido com os olhos de uma criança. Por ser filha de estrangeiros, pai belga (Jean-Baptiste Hissette) e a mãe indiana (Julieta Fernandes Hissette), não tem a nacionalidade do país de origem. Ela explica que era uma das regras do país, na época apenas filhos de pessoas nascidas na Etiópia poderiam receber a naturalidade etíope, portanto ela foi registrada como belga.
Cidadã do mundo, uma verdadeira cosmopolita de berço, nasceu num lar multicultural. Lá levava uma vida muito tranquila no seu país de origem. Seu pai era agrônomo e tinha um negócio próprio e sua mãe era funcionária das Nações Unidas. Quando estourou a guerra civil etíope, as coisas começaram a se complicar, ela conta que o fato de serem estrangeiros em meio a uma guerra civil étnica foi um tempero a mais para a perseguição.
“Meu pai foi jogado na cadeia, meu irmão com 11 anos de idade também foi preso. Nós só conseguimos ter uma vida um pouco mais tranquila porque minha mãe era das Nações Unidas. A gente perdeu tudo o que tinha. Saímos com uma mão na frente e outra atrás, ou melhor com as duas mãos para trás porque não tínhamos nada. Mal carregamos uma mala de roupa cada um para sair do país”. Ela explica que o processo de mudança levou dois anos. A guerra começou em 1974 e apenas em 1977 conseguiram mudar para o Brasil graças aos projetos do governo para o desenvolvimento do nordeste, entre eles estava o projeto de irrigação do Vale do São Francisco, em Pernambuco, que chamou a atenção por conta das condições climáticas semelhantes às da Etiópia. Eles foram os pioneiros no investimento em irrigação naquela região, que hoje tem essa forma de produção como a base da sua economia.
Aqui, ela diz ter conhecido a liberdade de brincar na rua. Antes na sua terra natal isso não existia por conta do clima de tensão instalado no país pré-revolução, mas no Brasil essa liberdade e o acolhimento do brasileiro foram coisas que chamaram da menina recém-chegada. “Você não tinha ninguém olhando para você, te hostilizando. É uma coisa muito forte você andar num lugar em que você é diferente fisicamente, etnicamente e não tem nada parecido com as pessoas, que te olham, cospem em você, xingam você, na época da revolução chegou ao ponto das pessoas jogarem pedras. E aqui não tinha nada disso, então era maravilhoso!” explica ela.
Brigitte conta que quando chegou ao Brasil além de ter que aprender o idioma no convívio, ela se impressionou com as diferenças nos hábitos culinários como: comer arroz e feijão todos os dias ou cortar o macarrão com faca, eram detalhes bastante diferentes para os olhos da menina que chegava em terras distantes. Ter contato com essas e outras diferenças culturais a ajudou a respeitar e a compreender a diversidade do mundo.
A fartura e o desperdício na mesa do brasileiro foi algo que soou um tanto estranho. “Quando você tem pais que vivenciaram a guerra e a fome, a comida é tratada de uma forma completamente diferente, é preparado exatamente aquilo que você precisa para comer naquele momento, nada de desperdício”. Preparar muita comida e depois jogar fora era um choque cultural para Brigitte e sua família.
Num momento de crise, durante o governo de Collor de Melo, tudo mudou mais uma vez. Brigitte que era formada em veterinária decidiu mudar de profissão para garantir a sua sobrevivência, diante de diversas mudanças na sua vida, percebeu que um traço da sua cultura que fazia parte do seu cotidiano poderia também ser uma fonte de renda. Ela conta que cresceu falando inglês e francês dentro de casa e nunca imaginou que essa viria a ser a sua fonte de renda. “Foi uma forma de eu utilizar esse presente que eu recebi desde pequena que são essas duas línguas mães: o francês do meu pai e o inglês da minha mãe. Você não se dá conta quando tem um tesouro nas mãos, mas hoje em dia eu consegui profissionalizar a utilização desses dois tesouros que eu tenho.”
De Nova Delhi para Asa Norte
Wanderlust. Essa palavra alemã, talvez venha a definir um pouco da história de Deepak Raykwar. Nascido em Nova Delhi, foi trazido ao Brasil pelos ventos do amor. Quando estudava cinema em Winsconsin nos Estados Unidos, se apaixonou por uma brasileira, de Brasília. Os dois se mudaram juntos para o Brasil, em setembro de 2013. Deepak conta que gostaria de trabalhar com cinema, em meio às câmeras, pois essa era a sua vontade quando chegou aqui. Mas o mercado não ajudou e, além disso, ainda estava aprendendo o idioma.
Ele conta que passou um ano sem trabalho por conta da dificuldade de comunicar em português e de encontrar trabalho na sua área de formação. Foi aí que começou a se reinventar. Pensou em abrir um negócio, então começou a vender roupas indianas ao perceber que muita gente na cidade se interessava pelo estilo de roupa, misturando peças indianas ao estilo brasileiro. Primeiro começou vendendo nas feiras as roupas e artigos que importava da Índia.
Seis meses depois estava com a loja montada, e então começou a ouvir sobre uma nova demanda. Muitas pessoas comentavam que sentiam falta de um restaurante indiano autêntico com tudo que tem direito na riqueza dos temperos dessa cultura. Segundo Deepak muita gente falava “se a gente vai num restaurante indiano, a gente quer comer comida indiana verdadeira.”
“Eu pensei, pensei e então decidi abrir um restaurante indiano bem autêntico”. Ele foi atrás de um cozinheiro também indiano, que abraçou o negócio. Há um ano, o restaurante está a todo vapor. Localizado na Asa Norte da capital do país, busca ser o mais fiel possível à culinária do país de origem. Quando pergunto sobre o futuro, Deepak revela que seu desejo é expandir o seu restaurante por Brasília e quem sabe pelo país.
Guardando as recordações
Os motivos que levam as pessoas a viajarem são os mais diversos. Às vezes precisamos arrumar as malas por questões de sobrevivências, às vezes a vida apenas sopra ventos diferentes, para novos rumos. Somos levados a experiências e lugares completamente novos.
No mundo multicultural em que vivemos, esse mundo híbrido que mistura culturas e formas de experienciar o mundo através das diversidades estejam elas na forma de falar, vestir ou comer ou até mesmo se reinventar. Assim, bagagens são formadas carregando recordações e um pouco das terras por onde andamos. Mudamos assim como rio de Heráclito.
Por Larissa Calixto
Com Supervisão de Luiz Cláudio Ferreira