Em um corredor longo, no primeiro andar de um prédio de três andares, estão várias portas não identificadas. É possível escutar barulhos como o bater de panelas e pessoas conversando. Ali está a entrada para o escritório da AIESEC, organização presente em todo o mundo com o objetivo de engajar e desenvolver lideranças jovens, a fim de alcançar a paz mundial.
Na parede ao lado da porta de entrada, a frase: “Engage and Develop every young person” (Engaje e Desenvolva toda pessoa jovem). Um ambiente moderno, com 19 cadeiras e quatro bancadas coloridas. No fundo uma parede ‘quadro de giz’ que revela, meio as informações sobre metas e siglas próprias, um símbolo autobot quase apagado, um reflexo das pessoas que utilizam aquele espaço. É neste cenário, que Amynah Lulí Graciano, 22 anos e presidente da AIESEC em Brasília, dedica mais de 40 horas semanais, com trabalho voluntário.
Dedicar parte de sua vida a um trabalho humanitário não é algo que sempre esteve em seus planos. Formada e pronta para fazer um concurso ou uma pós-graduação fora do país, é como Amynah acredita que estaria caso não tivesse tido o primeiro contato com a organização em 2014. Antes, muito tímida, só pensava em si mesma. Hoje um pessoa diferente, tem atitude e luta por mudanças, uma evolução rápida quanto a sua visão de mundo. A experiência, que inicialmente deveria ter durado seis meses, já está no seu quarto ano.
Hoje, como presidente da entidade, ela acaba ficando longe da ação mesmo que sua vontade seja de participar ativamente. Trata-se de um trabalho burocrático, que carrega ainda mais responsabilidades. Tomar decisões finais, analisar dados, cuidar do escritório e das pessoas ali, são atividades do seu dia-a-dia… mais especificamente nas terças, quintas e sextas, e em alguns finais de semana. Nos outros dias, Amynah é estudante, cursa ciências sociais na Universidade de Brasília.
Seja realizando o trabalho voluntário ou estudando, o dia continua tendo 24 horas. Administrar seu tempo não é uma tarefa fácil. Apesar da bagagem cheia de acertos e erros, hoje sua rotina parece ter se estabilizado. Ainda como diretora, em 2017, Amynah trancou a universidade por um semestre a fim de se dedicar apenas ao trabalho, já que tinha que cumprir 40 horas semanais, mas percebeu que não estava sendo produtiva como queria. Hoje, com uma agenda estruturada, ela valoriza o tempo com a família e busca um horário de descanso diariamente.
Força no sangue
Amynah: companheira, honesta e fiel. Esse é o significado do nome, de origem africana, da tribo Iorubá na Nigéria. Colocar nomes africanos nos filhos foi uma atitude que começou quando sua bisavó quebrou com o estigma da família de não conversar sobre a escravidão de seus descendentes e de suas dores, e resolveu que isso não deve ser algo que desperte vergonha. Um dos grandes ensinamentos que ela leva para a vida.
Nasceu e cresceu em Brasília. Filha única, ainda mora com os pais. A mãe veio de Goiânia e o pai do Rio de Janeiro, ambos em busca de uma vida melhor. Desde pequena, aprendeu com eles que “se você quer fazer, então faça bem feito. Não deixe pela metade”. Palavras que a motivam diariamente no trabalho. O apoio dos pais, que vêem tudo como experiência profissional, é fundamental.
Foi quando lutou pela vaga de presidente da AIESEC, que percebeu a influência moral e ética que os pais tiveram sobre ela. O pai teve de tomar a frente de sua família muito novo, com 20 anos, ter atitude. A mãe foi exemplo em sua militância para o movimento negro, além de sempre dizer “se você não gosta e te irrita, não reclame. Faça algo”.
Durante a adolescência, antes de ter contato com qualquer trabalho voluntário, não acreditava em mudança. “Apenas reclamava”. Tudo mudou quando percebeu que existia uma rede de pessoas que dedicam as vidas para melhorar o mundo, começando pela cidade onde moram. “Um tapa na cara”, é assim que descreve o choque de realidade. Passou a seguir outra mentalidade, a de não apontar o dedo, mas agir. Saiu de dentro da bolha em que vivia e passou a exercer como protagonista.
Hoje a paixão por ajudar pessoas faz parte de sua vida. “Não consigo viver sem”, afirma. Foi com este objetivo que, em 2015, abriu uma empresa de educação com um amigo, mas o projeto não foi para frente devido aos custos de ter um registro como pessoa jurídica. Mesmo que não tenha dado certo, a experiência fez com que ela percebesse que era exatamente isso que queria para seu futuro… uma empresa que ajude e engaje pessoas e que, de alguma forma, tenha impacto na sociedade. Ao descobrir este caminho, Amynah decidiu que sociologia não irá suprir suas necessidades profissionais, e planeja mudar para o curso de administração.
Liderança Jovem
Na parede do escritório, uma estante cheia de troféus, conquistas de anos anteriores que servem para incentivar o trabalho de cada membro, e reafirmar a diferença que fazem. Para participar da organização, existe um processo seletivo com entrevistas que chocam inicialmente, já que a pessoa do outro lado da mesa é apenas outro jovem, entre 18 e 30 anos. Este limite de idade faz com que tudo que aconteça seja devido a dedicação de jovens ao trabalho voluntário. Desde organizar um intercâmbio fora do país até fechar uma parceria com empresas multinacionais.
Em busca de maior representatividade dentro da organização, Amynah resolveu se candidatar a presidência de 2018, e reforçou em seu discurso a importância de um ambiente igualitário e sem intolerância. Através de uma votação, os 83 membros de Brasília decidiram que ela iria representar a Aiesec na capital. Por perceber a responsabilidade de ser líder em meio aos acontecimentos políticos e a situação atual do país, conquistar esta vaga significou algo ainda maior para ela.
Foco e disciplina são fundamentais, visto que ela toma todas as decisões ali dentro, algo que pode parecer difícil para uma jovem que ainda está no início de sua vida profissional. Não ser levada a sério por causa da idade é algo recorrente. O dono de uma grande empresa, por exemplo, disse que não fecharia uma parceria com jovens pois aquilo não fazia sentido.
De volta ao escritório, Amynah gosta de sentar em um lugar que a permite ver tudo o que acontece ali, uma posição acessível caso qualquer membro queira conversar com ela. A linha que divide trabalho e amizade é fina, mas isto não gera problemas, já que, para ela, é uma questão de assumir que todos ali têm a mesma faixa etária. A dificuldade aparece quando ela sai com os membros para se divertir nos finais de semana, e confessa que não consegue parar de ser “a presidente”.
Mementos
Em uma sala pequena, anexa ao escritório, utilizada para reuniões e entrevistas, Amynah conversa e relembra histórias de sua vida. Mesmo sem janelas, e apenas um ventilador, desligado, em um dos cantos, continua usando seu casaco que exibe a seguinte mensagem em inglês: Prosperidade & Pessoas & Dignidade & Justiça & Planeta. Palavras que vão além da estampa e se tornam objetivos a serem seguidos, presentes a todo momento em seu discurso.
No seu braço direito, duas pulseiras, uma com o nome da organização, e outra que inicialmente parece simples, mas que carrega um significado muito maior. A pulseira é da Colômbia, país que ela nunca visitou. Foi um presente do primeiro intercambista a assinar um contrato para vir para brasília realizar trabalhos voluntários. Ela quem fez a entrevista, mesmo sem saber espanhol, e participou de todo o processo. O colombiano se sentiu convidado a vir para cidade, e resolveu mostrar um símbolo de sua gratidão. Essa pequena lembrança, serve para mostrar que não importa qual seja a barreira, há sempre uma forma de ajudar as pessoas.
O computador, ferramenta que utiliza para trabalhar, também carrega outros significados. São dois adesivos, colados perto do mouse-pad, que revelam objetivos de desenvolvimento sustentável da ONU. Igualdade de gênero e Parcerias em prol das metas. São esses que mais a motivam e casam com sua luta pessoal.
Em meio ao trabalho diário, que pode ser muito estressante, ocupar um cargo alto significa que você deve ser o último a perder a paciência. Situações como um intercambista no egito “sumir” e ficar sem responder mensagens por alguns dias, podem acontecer. Sabendo disso, Amynah gosta de escutar músicas para manter a calma e relaxar.
Preconceito
Amynah é mulher e negra, e o preconceito sempre foi constante em sua vida. Ela não conseguiu esquecer situações absurdas como a de quando era apenas uma criança no ensino fundamental. A professora ia fazer um ditado e pediu que os alunos guardassem os materiais. Ela, então, pediu para a professora esperar um pouco, e recebeu como resposta: “Vou ter que esperar a neguinha guardar o lápis”.
Amynah sempre estudou em escolas particulares, e lamenta que a maioria negra do país não tenham a mesma oportunidade. Seja em outra escola de ensino fundamental, ou no ensino médio, era sempre umas das únicas negras. Chegou até a sofrer racismo de outro colega negro. Já na adolescência, quando voltava a pé para casa com uma amiga que estudava em um colégio público, as pessoas achavam estranho que era ela que estava com o uniforme da escola particular, e chegavam a dizer que as camisetas estavam trocadas.
Hoje como estudante universitária, não percebe qualquer racismo direcionado a ela. Já no seu cargo de presidente da Aiesec, situações de preconceito tendem a acontecer. Pessoas se assustam quando descobrem que ela ocupa o maior cargo ali dentro, e até mesmo durante o processo de posse, em que o antigo presidente apresentava seus contatos para ela, era vista como secretária e não como alguém que assumiria o cargo. Outra vez, tinha marcado reunião com uma startup para buscar parceria. Ao chegar na porta do local foi recebida com a seguinte frase: “Não estamos aceitando currículos”. A pessoa que a atendia não imaginou que era ela a aguardada para uma reunião de negócios.
Em meio a tanto preconceito, a intolerância também prevalece, atingindo pessoas ao seu redor. Responsável por legalizar um intercambista no país, na época, levou o tunisiano para fazer documentos. No local, conversava em inglês com o rapaz, atraindo vários olhares até a atendente perguntar, surpresa, se ela falava inglês. A mulher atrás do balcão perguntou porque o rapaz estava ali, e em seguida, se ele não era um homem-bomba. “Isso não é uma brincadeira que se faça”, respondeu.
Marrocos
No fim de 2015, decidiu que estava na hora de tentar um cargo maior dentro da Aiesec, e se candidatou a uma das diretorias. O resultado não foi a seu favor, e veio como um choque. Começou a questionar o porquê de estar ali, se estava fazendo tudo certo e se estava valendo a pena, foi então que decidiu se afastar por um tempo e fazer um intercâmbio pela organização. Não imaginava que a viagem que estava prestes a fazer, mudaria sua vida para sempre, seja na forma de ver o mundo e as pessoas, quanto na maneira que ela se encontra neste meio.
Primeiramente, escolheu um projeto que ligava diretamente com o 17º objetivo de desenvolvimento da ONU, parceria em prol das metas, sem saber para onde iria. Quando descobriu que ia para Marraquexe, no Marrocos, se assustou mas decidiu encarar o desafio. A duração seria de sete semanas, e foram escolhidas 30 pessoas em todo o mundo para realizar este intercâmbio. Assim que chegou na cidade, depois de 20 horas viajando, uma surpresa: os outros 29 não foram, com medo de ataques terroristas. Ela era a única a desembarcar e deveria trabalhar ali, inicialmente, sozinha.
Ficou hospedada no apartamento de uma angolana, em um prédio onde apenas negros moravam. O país é racista, com muita diferença entre classes. Foi importante para ela ter contato com a cultura africana, e aprender com Nicolacia, sua host. Elas dividiam a cama, as roupas tinham que ficar na mala, e revezavam na cozinha. Uma realidade totalmente diferente se comparada a sua vida no Brasil ou quando fez um intercâmbio em Londres para aprender inglês.
Logo no início, o incidente mais marcante de racismo e assédio na sua vida aconteceu. Foi agarrada em uma rua por três marroquinos bem vestidos, que diziam “você tem que voltar pra África”. Só foi liberada pois mostrou o passaporte brasileiro. Ser segurada com força, e só poder ir embora por ser brasileira, pode não ter deixado marcas físicas, mas trouxe cicatrizes psicológicas. Depois disso, teve que decidir entre contar para os pais e voltar para casa, ou continuar seu intercâmbio e lutar para ajudar pessoas como Nicolacia, que passavam por isto todos os dias. Amynah, então, se reafirmou como mulher negra e percebeu o quão importante é seu trabalho voluntário.
Decidiu continuar o projeto e entendeu que precisaria de mais pessoas engajadas, pois o problema a ser resolvido era muito grande para ela enfrentar sozinha. Em uma fala ao povo, promovida pela Aiesec de lá, conseguiu que pessoas a nível local quisessem ajudar. Começaram então a entrar em contato com a maior mídia da cidade e Ongs, para aumentar a mobilização. Neste período, teve contato com diferentes pessoas com percepções únicas. Conheceu uma menina que dava aulas de debate e quando descobriu o projeto, resolveu trazer para suas discussões os problemas daquela sociedade e como mudar.
Nas últimas semanas do intercâmbio, uma empresa da cidade resolveu fazer parceria com o projeto e disponibilizar bicicletas pela cidade, a fim de diminuir o número de carro nas ruas e diminuir a poluição. Neste momento, Amynah percebeu sua importância. Tinha aprendido a olhar para adversidades e buscar uma forma de transformar aquilo em algo positivo, que devia assumir quem ela era e dessa forma empoderar mais pessoas. Já não era a mesma pessoa que embarcou para Marraquexe. Estava pronta para voltar para casa e encarar desafios ainda maiores na capital do Brasil.
Por Thales Augusto