As mãos são calejadas do esforço de cavar a terra. O solo fértil preparado para o plantio recebe as sementes que, com carinho, são germinadas e dão o sustento necessário para a manutenção de um novo ciclo de trabalho árduo. O cuidado com a terra não serve só para a alimentação.
A maior horta urbana do Distrito Federal mudou toda a atmosfera de uma cidade, São Sebastião. Ela foi capaz de transformar um lixão abandonado em área verde; o receio e a morte, em vida.
Hozana Alves do Nascimento, de 50 anos, é natural de Crateus, interior do Ceará, e mora no Distrito Federal desde os 13 anos. Ela é coordenadora da Horta Comunitária Girassol, em São Sebastião, e atua em movimentos populares desde os 14 anos. Hozana contou que a horta surgiu em 2005, após uma tragédia anunciada.
Dados do Departamento de Geografia da Universidade de Brasília, em parceria com Instituto de Patologia Tropical e Saúde Pública da Universidade Federal de Goiás, revelaram que de 2004 a 2009 a região administrativa de São Sebastião foi a mais afetada pela hantavirose no Distrito Federal.
A doença, que é transmitida por roedores, surgiu de um lixão abandonado — consequência da expansão urbana em direção às áreas de cerrado — e se transformou em surto.
No tempo em que nada foi feito, 13 vidas foram perdidas. Uma dessas vidas era da empregada doméstica Marinalva Pinto da Cruz, 25 anos, vizinha de Hozana. Ela faleceu em 10 de agosto de 2004, no Hospital de Base do Distrito Federal.
O clamor por justiça fez a comunidade de São Sebastião protestar. Ao todo, 250 pessoas, entre donas de casa, vizinhos e amigos de Marinalva se reuniram, com faixas e máscaras improvisadas. A manifestação aconteceu na avenida principal do bairro Morro Azul, onde ela morava. As imagens da época se confundem com as da pandemia de covid-19; o medo da contaminação era o mesmo.
O surto da doença alimentou a epidemia do preconceito. Moradores de São Sebastião passaram a ser evitados no ônibus e até demitidos de seus empregos. Os comerciantes se queixaram do protesto — afirmavam que os moradores estavam contra a própria cidade.
No ano seguinte, Hozana se reuniu com a comunidade para remover o lixão e substituir por uma horta urbana. Com o tempo, a paisagem foi tomada por mudas e vários tipos de verduras, legumes e frutas vieram a surgir. O Morro Azul passou a contar também com um verde que, além de espantar doenças, é capaz de alimentar os moradores.
Hozana e os colaboradores decidiram que “não iam usar veneno”. Os alimentos são cultivados de forma orgânica desde aquela época. A horta também é importante para preservar três nascentes da região.
Técnica em meio ambiente pelo Instituto Federal de Brasília (IFB), Hozana possui projetos de capacitação exclusivos para as mulheres, na área da agroecologia, onde ensina a plantar, cultivar, colher e reciclar. Ela conta que, apesar dos avanços políticos, ainda falta reconhecimento das lideranças femininas por parte da sociedade.
Em 2017, a então Secretaria de Estado de Gestão do Território e Habitação (SEGETH) alegou que a área ocupada pela horta era de uso exclusivo do DF e seria destinada a programas habitacionais. Com muita luta, Hozana conseguiu manter a horta.
Mesmo com as dificuldades, ela segue no caminho por uma cidade que atenda às necessidades das pessoas e respeite a vida.
Casa de saúde
“Lugar onde a gente pega os remédios”. É assim que alguns moradores se referem à casa de Josefa Francisco Gomes Ataides, de 61 anos, também moradora de São Sebastião. Nascida no município de Palmeiropolis, interior de Tocantins, ela sempre usou o que chama de “medicina da floresta” para afastar as doenças. Quando precisavam de algo que não cultivavam, procuravam com vizinhos, para trocar por aquilo que produziam.
Josefa foi alfabetizada por uma vizinha da comunidade, já na adolescência. Após se casar, ela se mudou para Anápolis-GO e, posteriormente, passou a morar no Distrito Federal, onde se reuniu com outras mulheres, para lutar por um cultivo sustentável e com fins medicinais.
“Não perdi minha conexão com essa minha essência rural e resgatei esse conhecimento. Mas como isso não era visto com bons olhos, a gente escondia um pouco o conhecimento que tinha.”
As mulheres chamadas de “raizeras” conhecem muito mais do que raízes, início da linhagem das árvores. Elas vão das flores às folhas, às cascas e às ervas. Tudo é aproveitado. Insumos usados não apenas para tratar doenças, mas para manter a saúde.
Josefa relata que a “medicina da floresta” considera a relação com o meio ambiente como parte da causa das doenças e também da cura. Os que eram contra, colocaram a prática sob suspeita. A razão da desconfiança é tão antiga quanto a colonização do país.
“Minha conexão de camponesa, minha conexão com a terra e com as plantas era muito discriminada. Eu ficava sem entender por que aquilo que me fazia tão feliz não era aceito por outras pessoas.”
Foi na educação popular que Josefa descobriu que seus conhecimentos eram valiosos.
“Eu saio da educação popular muito contente em saber que ser quem eu sou é ser muita coisa.”
Hoje, ela mora em São Sebastião e é amiga de Hozana. As duas atuam em coletivos femininos para dar instrução e autonomia para outras mulheres. Militantes, elas lutam por uma atuação cada vez mais presente e reconhecida das mulheres rurais na política, para que elas sejam não apenas representadas, mas também atuantes.
Por Mateus Souza
Com supervisão de Luiz Claudio Ferreira