Ex-Procurador-Geral da República, entre 2003 e 2005 (durante o governo Lula), e integrante da Comissão Nacional da Verdade, entre 2012 e 2013, o professor de direito Claudio Fonteles conhece com profundidade os efeitos do Ato Institucional número 5 (AI-5), instaurado em 13 de dezembro de 1968, há exatos 50 anos. Além das consequências práticas e reconhecidas pela história, como a revogação das liberdades individuais e fechamento do Congresso, Fonteles entende que a juventude da época foi vitimada pelo estado de exceção. Confira abaixo a entrevista que ele concedeu à Agência de Notícias UniCEUB.
– Na avaliação do senhor, a instauração do AI-5 alterou sobremaneira a história do governo militar?
Claudio Fonteles – Não resta a menor dúvida. O que significa a edição do AI-5 foi o extremismo do estado ditatorial militar. Eu até fiz um trabalho de pesquisa na época em que estava na CNV e tive acesso à ata em que se debateu a edição do AI-5. Inclusive publiquei o teor integral dessa ata, que é um documento histórico de intenso valor e você vê a posição de todos os membros que compunham o governo Costa e Silva naquela ocasião e portanto se confirma a ideia que acabei de dar da radicalização brutal do estado ditatorial militar.
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– Pelo o que senhor analisou, após o AI-5, a violência por parte de agentes do estado recrudesce muito?
Claudio Fonteles – Os setores mais radicalizados dizem que a revolução foi ‘branda’. Não há revolução. O termo correto pra mim é ‘golpe de estado’. Mas não foi brando nem leve. O processo foi muito violento e persecutório.
– Quais foram as principais vítimas das violências autorizadas pelo AI-5? Intelectuais, guerrilheiros, ativistas, populações socialmente vulneráveis?
Claudio Fonteles – Aí é muita gente. Todo o ambiente estudantil sofreu fortemente, principalmente o ambiente universitário, mais os alunos. A juventude sofreu muito. Naquela época, eu fazia parte da juventude brasileira. Em 1969, eu estava no 5º ano na UnB. Nós sofremos muito. Professores, intelectuais, sindicalistas, políticos de um viés democrático. Há também, depois, as populações minoritárias, principalmente as populações indígenas porque a mentalidade era de enquadrar a população indígena, a sociedade, a civilização branca, vamos dizer assim. Enfim, realmente vários setores foram profundamente atingidos.
– Como foi a atuação da justiça em meio a tantas restrições de direitos naquela época?
Claudio Fonteles – A justiça ficou altamente comprometida. O AI-5 acabou, digamos assim, com algo fundamental da justiça, que é sua liberdade de decisão e o zelar pela imparcialidade. Em relação a minha instituição, eu vivi isso fortemente depois porque isso se prorrogou. Teve um Ministério Público completamente estagnado, como se fosse um ‘orgãozinho’ do Ministério da Justiça. Sua dimensão social de liberdade só vai surgir com a redemocratização, quando aí, nós, MP, nos transformamos em instituição da sociedade brasileira, até para enfrentar o próprio estado. Mas isso acontece somente anos depois, com a redemocratização e consolidação da democracia com a Constituição de 1988, que estamos celebrando 30 anos.
– A justiça foi cúmplice? Como o senhor avalia durante essa época?
Claudio Fonteles – Cúmplice não sei te dizer. Pode ter um ou outro setor, agora é amedrontadíssima, porque você tinha ali uma espada de Dâmocles, que poderia cair e ceifar você e todos os seus direitos imediatamente, e foi o que se passou.
– E o senhor considera que a imprensa foi conivente?
Claudio Fonteles – A imprensa foi igualmente vítima. Muitos jornalistas de posicionamento libertário também foram profundamente perseguidos, presos, sofreram processos… E aí você tem alguns órgãos da grande mídia que aderiram a isso.
– O que o senhor entende que é herança do AI-5 nos dias de hoje, se é que há alguma?
Claudio Fonteles – Eu acho que ainda tem fortemente. São as soluções da violência e do preconceito porque todo ditador se faz único detentor da verdade, e por aí já elimina qualquer possibilidade de discordância. O ditador vive em função da uniformidade, ou seja, uma visão muito interessante que tem um filósofo, o Alceu Amoroso Lima, de pseudônimo Tristão de Athayde. Ele faz a distinção do que é o uniforme e do que é o uno. O uniforme é a supressão do diverso, a supressão do diferente, para estabelecer um único padrão comportamental. O uno é a possibilidade do consenso dentro da divergência. A unidade na diversidade.
– O senhor entende que há alguma semelhança com o momento que estamos vivendo e o ano de 1968?
Claudio Fonteles – Não, na forma de acesso ao poder não. O senhor Jair Bolsonaro conquistou legitimamente, pelo voto popular, o poder. Agora, a filosofia dele, não resta a menor dúvida, é um retorno a essa visão de uniformidade. A CNV (Comissão Nacional da Verdade) demonstrou documentos produzidos pelos próprios órgãos da repressão no passado a que tivemos acesso pela LAI (Lei de Acesso à Informação) que foi promulgada pela presidente Dilma logo que instaurou também a comissão. Tudo é documentalmente demonstrado pelos próprios serviços de segurança do estado militares.
Atualmente, a gente já começou a ter um compromisso cidadão, e aí a gente pode, com isso, resgatar os valores sempre fundamentais da democracia. Eu já estou aposentado, mas puxando a brasa pro meu lado, hoje o MP tem um papel muito importante em defesa dos direitos humanos, em defesa das minorias, inclusive isso está na constituição, no artigo 127, em defesa do regime democrático. A nossa instituição existe para a defesa da democracia. Então você tem hoje um quadro melhor de uma cidadania mais ativa, não ideal e nem até como eu gostaria, eu diria que está numa fase de nascimento e portanto não vai se conseguir aquilo que se conseguiu no passado.
Os representantes das instituições têm falado que as instituições estão funcionando normalmente. O senhor vê que podem existir condições para uma repetição daquele cenário de alguma forma? O senhor acha que a Lei da Anistia, ao não punir quem cometeu crimes naquela época, pode ter facilitado a ascensão de um discurso opressor e conservador?
Não tenha dúvida. O caso da Lei da Anistia, até escrevi um artigo sobre isso, mostrando que ela é juridicamente inconstitucional. Ela depende de apreciação do STF, e isso está há anos na mão do ministro Luiz Fux, que infelizmente não pautou ainda. Devo até corrigir algo: como o ministro assumiu a presidência do eleitoral, ele não tinha apreciado, mas ficou anos na mão dele. Ele então declinou da relatoria e foi encaminhado agora ao ministro Alexandre Moraes, se não me falhe a memória este ano de 2018. Mas isto deveria ser apreciado. Seria um fator de inibir quaisquer atitudes de retorno ao passado. Mas você vê essa movimentação que acho das mais graves possíveis, como um todo e a relação professor-aluno. Essa Escola sem Partido (arquivada em dezembro) é uma barbaridade. Não se pode permitir que se volte a isso de maneira nenhuma. A cátedra sempre foi e sempre será livre, e aí que você realmente produz o conhecimento. Na liberdade, na diferença de opiniões, no respeito as opiniões divergentes, mas não impossibilitando a pessoa de externar suas opiniões. Tanto os alunos quanto os professores. Esta tentativa de passar pela formação da cultura, da produção do conhecimento como um dos pontos muito sérios. Eu espero que ao passar essa lei, o MP, de pronto, levante sua inconstitucionalidade.
Que clima o senhor vê de colegas antigos do MPF em relação a esse momento? E no dia 13 de dezembro completará 50 anos do AI-5. Como o senhor acha que essa história deve ser contada para estudantes? Como podemos instruir as pessoas sobre o que foi o AI-5?
Vou fazer uma análise do papel da CNV. Infelizmente nosso papel deixou a desejar, porque tivéssemos nós conseguido sensibilizar grande parte da sociedade brasileira e esse viés antidemocrático não teria recrudescido. No nascedouro seria impedido esse viés. A CNV infelizmente não atingiu a sociedade. Poucas pessoas sabem o que ela produziu. Muita poucas pessoas. É um universo de 1% ou 0,5%, então foi uma falha nossa. Então eu acho que o fundamental seria você manter acesa essa chama de debate como você está fazendo com seus alunos aí. Replicar em muitas unidades da federação e muitas universidades e muitas áreas de conhecimento, não só o jornalismo, enfim nas humanas e exatas também. Acho que aí passa a ter um papel fundamental a universidade brasileira e o próprio ensino médio brasileiro para conhecerem bem essa história, porque no momento em que você conhece, você consegue colocar bases sólidas para defender bem uma democracia, se não é aquela frase que eu sempre digo: “para que não se esqueça para que nunca mais aconteça, mas para isso é preciso que se conheça” e esse conhecimento hoje está em xeque.
Confira programa da TV Brasil sobre o AI-5
Por Vinícius Heck
Colaborou: Mariana Fraga
Supervisão de Luiz Claudio Ferreira