Leia mais

Mais lidas

Útimas notícias

Nordestinos relatam que chegada a Brasília foi de luta e não de “faroeste caboclo”

“E João aceitou sua proposta. E num ônibus entrou no Planalto Central. Ele ficou bestificado com a cidade. Saindo da rodoviária, viu as luzes de Natal”. Há 32 anos atrás, João saía de Santo Cristo, cidade fictícia no sertão do Nordeste, e entrava para a história da cultura brasileira nos versos de Faroeste Caboclo de Renata Russo. A famosa história apresentou para o país um jovem que veio para a capital em busca de uma vida mais digna, mas não conseguiu devido às circunstâncias.

Mas a trajetória de João de Santo Cristo não é apenas ficção. Assim como ele , milhares de pessoas deixaram o Nordeste e vieram para Brasília carregando algumas malas e o sonho de construir uma vida melhor. Os nordestinos formam 51,1% da população da capital. Os principais estados de migração são Bahia (21,7%), Piauí (21,2%), Maranhão (18,2%) Ceará (14,7%), Paraíba (10,3%) e Pernambuco(7,2%). Brasília é 4ª maior capital que possui nordestinos no Brasil,perde somente para Salvador, Fortaleza e Recife.

A Feira Central da Ceilândia guarda histórias desses nordestinos que já entendem a região como o próprio lar. Em frente a uma banca repleta de queijos e temperos, está José Messias Filho, 64 anos, nascido em Granja, cidade interiorana do Ceará que tem cerca de 50 mil habitantes. Ele está em Brasília há 44 anos, veio à capital após completar a maioridade e se instalou em Ceilândia, sozinho e com o sonho de encontrar um bom emprego. ”Falavam que aqui (Brasília) tinha boas oportunidades, mas era trabalho pesado na construção civil. Na época, não tinham nem muitos comércios”, relembra.
E assim como João de Santo Cristo que trabalhava em Taguatinga sendo aprendiz de carpinteiro. José Messias também se aventurou em trabalhos braçais nas cidades satélites da capital. “Trabalhei nesses ramos de construção civil em Ceilândia, Núcleo Bandeirante, assim que cheguei, depois fui vigia. Mas não era esse o meu foco”.

José queria mesmo era trabalhar no comércio e conseguiu após alguns anos, trabalhou para os outros até ter dinheiro para montar a própria banca na feira da Ceilândia, ao lado de diversas outras propriedades de pessoas que também vieram do Nordeste na esperança de uma vida melhor. “Não sofri preconceito nos primeiros anos em Brasília porque a maioria das pessoas também eram nordestinas. Todo mundo vinha com o objetivo de sobrevivência, queriam levantar uma economia para depois voltar para a cidade natal, mas a maioria se acomodou aqui mesmo”, relembra.

O vendedor foi um desses. Constituiu uma família na capital e nunca mais pensou em voltar para a pequena Granja. “Casei e criei as minhas duas filhas aqui, apesar da dificuldade, consegui me estabelecer na cidade”. Hoje, José continua morando em Ceilândia e relembra as mudanças que viu a cidade enfrentar”. Ele entende e que atualmente tudo está mais difícil. Antigamente tínhamos mais clientes na feira. Já hoje é mais escasso. “Ainda consigo viver com a renda da banca, mas não é um dinheiro que sobra”.

Um pedaço do Nordeste

Ceilândia foi o palco do duelo entre João de Santo Cristo e Jeremias nos versos de Renato Russo, resultando na morte do anti herói e da amada Maria Lúcia. Mas apesar das marcas de sangue cantadas na música, a cidade carrega dentro de si um pedaço valioso da cultura e do povo nordestino. Dados da Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios do Distrito Federal (PDAD), mostram que 50% dos nordestinos que residem em Brasília moram em Ceilândia, a cidade é a que mais possuem nordestinos no DF. A cultura nordestina pode ser facilmente apreciada em locais como Casa do Cantador e Feira Central de Ceilândia.

Destino durante a seca
O geógrafo Aldo Paviani explica que a o momento mais intenso da vinda dos nordestinos para Brasília foi durante os anos 1960 e 1970. “Nos anos 1980 e 1990, a imigração se atenuou, mas continuou a acontecer por duas razões: falta de chuvas no interior do sertão, obrigando a saída de pessoas, às vezes com a família toda e busca de oportunidades de trabalho”.

Aldo comenta que essa migração foi denominada por migração por etapas, onde alguns desses nordestinos encontram refúgio nas casas de parentes que moravam no sertão. “Muitos possuem parentes, mormente em Ceilândia, onde procuram morar até encontrar emprego e local para moradia, sempre na dependência de encontrar trabalho e colocar os filhos em escolas”. Para o professor, a vinda de nordestinos saído do nordeste tem diminuído por conta do aumento das chuvas no sertão.

“Temos que ter esperança”

Maria do Socorro chegou a Brasília com marido e quatro filhos. Foto: Ana Carolina Assenço

Maria do Socorro, 89 anos, chegou a Brasília no ano de 1957, antes do pico da migração,com o marido e os quatro filhos. ela conta que o motivo que a fez sair da sua terra natal no interior do Nordeste foi a angústia que estava passando “Perdi um filho e fiquei desgostosa de continuar lá, então logo surgiu a notícia da construção de Brasília, vendi a casa lá e comprei na invasão no Núcleo Bandeirante” relata.

Os anos recém chegados na capital foram repletos de dificuldades para a família de Maria. “Não tínhamos casa, não tínhamos nada, morávamos debaixo de lona, com muitos filhos. Foi um período complicado’, relembra.

A comerciante explica que ela e o marido sempre trabalharam no comércio no Nordeste e que isso facilitou quando decidiram montar uma banca de panelas na Feira Central de Ceilândia. A banca existe há mais de 30 anos. A senhora conta que mesmo sendo aposentada ainda vai todos os dias trabalhar “Gosto daqui, gosto nem de ficar em casa, gosto de ficar aqui”

Assim como José Messias, a aposentada também se queixa acerca da diminuição dos clientes na feira. “Não tem renda. O comércio caiu demais. Roubaram o dinheiro todo de Brasília, não tem mais movimento” lamenta.

Mas apesar dos empecilhos, ela ainda se sente confiante “Vai melhorar se Deus quiser, temos que ter esperança”. Ela relata que não sente vontade de voltar a viver na cidade em que nasceu. “Gosto muito daqui, tenho minha casa, meu comercio, minha família não posso deixar eles aqui”.

Por Julia Fagundes, Isabela Péres e Maria Júlia Spada

Supervisão de Luiz Claudio Ferreira