Rio de Janeiro, 1956. Numa das mesas do Juca’s Bar, que ficava dentro do hotel Ambassador, no centro da então capital brasileira, Oscar Niemeyer, acompanhado de amigos, pega um guardanapo e rabisca, com mãos ágeis, o projeto da primeira residência oficial de Juscelino Kubitschek na nova capital federal que estava sendo construída. O nome foi inspirado na sede oficial do governo federal inaugurada no século 19, o Palácio do Catete. Surgia assim, num gesto simples, tal qual Lucio Costa fez para esboçar o Plano Piloto, o Catetinho. Revitalizado recentemente pela atual gestão do GDF, o espaço já nasceu sob o signo da história.
“Foi a primeira edificação do período da construção de Brasília. Envolve um simbolismo por ter sido projetada por Oscar Niemeyer com traços simples, traços esses que viriam marcar outras construções do arquiteto”, sustenta o professor de sociologia e pesquisador Guilherme França, coautor, juntamente com a historiadora Christiane Portela, do curta-metragem O Palácio de Tábuas, lançado em 2012.
No filme, de pouco mais de dez minutos, pioneiros de Araxá (MG) que fizeram parte da construção do Catetinho, direta ou indiretamente, ligados à empresa mineira Fertisa, são homenageados, lembrando a aventura que foi chegar ao coração do Planalto Central para levantar o edifício de madeira. Tudo em tempo recorde: dez dias. Niemeyer se inspirou num galpão de obras para desenhar o casarão. O lugar escolhido, parte do terreno da antiga fazenda Gama, foi o primeiro chão em que JK pisou no DF.
“A importância do Catetinho foi enorme não só na vida dos pioneiros araxaenses, fazendo Araxá ficar conhecida nacionalmente, mas ligando as duas cidades [Araxá e Brasília] umbilicalmente”, comenta Ahilton Guimarães, 83 anos. Ele foi um dos mineiros que participaram – a distância – da construção do “palácio de tábuas”. Então funcionário administrativo da Fertisa, Ahilton teve sob sua responsabilidade, entre outras atribuições, a logística do embarque do comboio de caminhonetes, caminhões e carretas até o local das obras. “Durante a construção do Catetinho, eu permaneci em Araxá; só depois da obra concluída é que fui até Brasília”, conta.
Vaquinha
Reza a lenda que a compra dos materiais para a empreitada veio de uma “vaquinha” feita por Niemeyer e amigos do presidente naquela mítica noite no Juca’s Bar. Além do arquiteto e do dono do bar, José Ferreira de Castro Chaves – o Juca –, fizeram parte da reunião os engenheiros Roberto Penna e Joaquim da Costa Júnior, o piloto João Milton Prates e o compositor e violonista Dilermando Reis, que era professor de violão de JK.
O encontro teria acontecido 15 dias depois da primeira visita presidencial ao Cerrado brasiliense, em outubro de 1956. Estarrecido com a notícia de que JK pretendia acompanhar as obras da nova capital sem ter um lugar adequado para ficar, o grupo meteu a mão no bolso e fez a coisa andar. Uma nota promissória de quinhentos contos teria sido descontada no Banco de Minas Gerais, em Belo Horizonte. Há controvérsia sobre essa versão.
“É um episódio inserido dentro do mito fundador da cidade”, atenta o historiador Wilson Vieira, coautor de uma publicação que conta o surgimento do DF a partir de mapas do século 18. “Pode ter tido um movimento nesse sentido dos amigos do presidente, mas que ganhou uma revisitação mágica, romanceada, enaltecendo personagens diante de um feito histórico. As obras do Catetinho foram pagas pela Novacap [Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil], e toda a documentação da construção se encontra no Arquivo Público do DF.”
“Água de beber”
O presidente Juscelino Kubistchek usou intensamente o Catetinho na fase inicial da construção de Brasília, para pernoitar, durante o acompanhamento das obras. Também eram assíduos no local o presidente da Novacap, Israel Pinheiro, e os diretores da empresa, Bernardo Sayão, Íris Meinberg e Ernesto Silva. Ernesto, no livro História de Brasília, relata: “Durante dois anos, residimos no Catetinho Israel, eu e Iris Meinberg, além de alguns engenheiros. Ali dormíamos, fazíamos as nossas refeições. Em torno da mesa tosca, prolongávamos, pela noite, as nossas discussões sobre os problemas mais urgentes, as decisões a tomar, a ação a empreender”.
Por ali também passaram autoridades internacionais, como a rainha da Inglaterra, Elizabeth II e, em junho 1959, dois grandes nomes da música brasileira então em franca ascensão: o maestro Tom Jobim e o poeta Vinícius de Moraes, que fizeram história dentro da história. Incumbidos por JK de escrever, em dez dias, uma peça clássica falando sobre a construção de Brasília e a bravura dos pioneiros que ergueram a cidade – a Sinfonia da Alvorada –, tiveram tempo ainda de criar um clássico da MPB, o primeiro registro musical do DF.
Gravada até por Frank Sinatra, Água de beber nasceu da sensibilidade telúrica de Tom Jobim. Certa noite, após um jantar, ele percebeu o rumor de uma bica d’água atrás do Catetinho. Ao perguntar que barulho era aquele, ouviu do vigia: “Você não sabe, não? É aqui que tem água de beber, camará”. E foi assim que conheceu a fonte na qual JK, um dia, de terno e gravata, fez questão de molhar as mãos, o rosto e matar a sede.
Museu revitalizado
Tombado como Patrimônio Cultural do DF em 1959 e desde 1970 transformado em museu, o Catetinho, hoje, é uma das atrações turísticas da cidade, reunindo móveis antigos, objetos pessoais e de trabalho do presidente Juscelino Kubistchek, além de acervo bibliográfico. Uma visita ao local é uma viagem no tempo, com o público sendo guiado pelo cheiro forte de madeira, da natureza que cerca o casarão, pela nostalgia dos objetos e por dezenas de fotos em preto e branco.
Tudo está espalhado pelos oito cômodos do espaço, que vão desde a suíte presidencial e passam por quartos de hóspedes, banheiros e cozinha. Fragmentos da história da nossa cidade que a equipe de conservação e restauro teve o cuidado de tratar, equilibrando preservação histórica, natural e ambiental. Tudo em conformidade com o projeto original.