3… 2… 1… E começa a encenação, é preciso imitar os movimentos, o jeito de sorrir, como andar, como conversar. Não se esqueça das expressões faciais. Sorria, acene, cumprimente. Não fale tão alto, mas também não fale tão baixo. É simples? Siga o roteiro e, se esquecer, copie as meninas ao redor. Anule todas as suas características e coloque dentro de uma máscara. Pode parecer um espetáculo de teatro, uma apresentação de dança e, nessas situações, poderia ser até divertido. Mas, para muitas mulheres e meninas autistas como Amanda Paschoal, essa é sua realidade 24 horas, durante anos – aprender a mascarar involuntariamente os sintomas do autismo e colocar uma máscara no lugar de quem você é. É, por isso, que o masking é cada vez mais debatido pela comunidade autista. Hoje, aos 30 anos, Amanda pode não apenas ser quem ela é com orgulho, mas também ajudar tantas outras meninas que passam por diagnósticos errados e se sentem presas nas máscaras que vivem.
Um transtorno psicológico rodeado de falsos estereótipos e preconceitos, o Transtorno do Espectro Autista (TEA) é diagnosticado em cerca de 70 milhões de pessoas no mundo, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS). Estima-se que no Brasil, cerca de 2 milhões de pessoas têm esse transtorno, mas os dados são incertos. Segundo a psicóloga Amanda Silva de Souza, como o próprio nome diz, o TEA é amplo quando falamos de sinais e sintomas. “É sempre importante lembrar que o autismo é um espectro, suas manifestações são diversas e muito individuais”, explica. E aí entra o primeiro falso estereótipo do transtorno: o autismo é exclusivamente masculino. Ao longo da conversa, a psicóloga explica que a maior incidência do transtorno em meninos acontece, principalmente, por conta das poucas ferramentas para fechar o diagnóstico voltado à mulheres.
Segundo a especialista, a incidência de diagnósticos revela que a cada 4 pessoas com diagnóstico de TEA, 3 são homens. “É muito comum observarmos mulheres em fases muito mais tardias da vida que passaram anos sem compreender de fato suas individualidades recebendo diagnósticos, enquanto os garotos tendem a receber desde cedo”, explica Silva.
Além dessa falta de ferramentas, as mulheres autistas tendem a mascarar seus sinais e sintomas, como mostrado no início do texto. “Por questões sociais e culturais, as mulheres tendem a mascarar o que sentem, e essas meninas vão mascarando inclusive características do próprio autismo”, clarifica a dra. Amanda sobre o que é o masking. Ela ainda frisa que essa ação gera conflitos internos na paciente, além de causar sentimentos de exaustão física e mental.
Prólogo: Menina é mais tímida mesmo…
O autismo vai muito além de um diagnóstico ou de um padrão repetitivo de sinais. O espectro abrange diferentes possibilidades. A psicóloga Isabela Dantas da Rocha, 26 anos, especialista em Autismo, reforça que mesmo com sinais comuns, uma pessoa diagnosticada pode apresentar características mais variáveis possíveis. “Os sintomas mais clássicos são hiperfoco ou interesses restritos, déficit social e déficit na comunicação. Porém, mesmo sendo os sintomas mais clássicos, podem ser ou não apresentados, não sendo uma obrigação. O que acontece com as meninas é que, com sintomas leves e o masking, elas normalmente recebem outros diagnósticos, como o de fobia social”, ressalta Dantas.
Quem nunca ouviu falar que as meninas são mais quietas, tímidas e que esse tipo de comportamento era uma coisa boa? A realidade é que esse padrão social foi o principal fator para que muitas meninas recebessem diagnósticos errados.
“As meninas têm essa maior capacidade de se moldarem socialmente, o que resultava nos atrasos ou não diagnósticos. Com os avanços dos estudos, aumento da informação e capacitação dos profissionais especialistas, o número de diagnósticos aumentou consideravelmente. Os profissionais conseguem olhar para os sintomas, mesmo que mascarados e seguir uma abordagem melhor”, relata Isabela.
Ato 1: “Tirar a máscara social não é fácil e não é da noite pro dia”
Nas redes sociais, como Tik Tok e Instagram, o tema está cada vez mais em alta. Influenciadoras autistas contam a experiência de viver com o transtorno e, principalmente, as diferenças do autismo em mulheres. É muito comum que, em casos leves do autismo, as mulheres mascaram os sintomas por anos, mesmo que já tenham o diagnóstico do autismo, para tentar se enquadrar no padrão neuro normativo – de pessoas sem transtornos. Um dos principais nomes que lutam pela conscientização é a mineira Bianca Lima, 23 anos, que atualmente conta com quase 100 mil seguidores em sua conta no Tik Tok.
Ato 2: O pós-diagnóstico: dia a dia de mulheres autistas e a visão das mães de meninas
Em mais um dia comum, Karina estacionou na vaga especial com sua filha Amanda e, como de costume, as pessoas a encaravam com um olhar de reprovação e nesse dia, especificamente, um rapaz pediu para sair da vaga porque “não era dela”. A mãe, acostumada com a situação, apresentou a autorização de estacionamento para pessoas com deficiência (PcD). O homem, sem graça, vai embora e pede desculpa de forma rápida e simples.
Sua filha Amanda Rodrigues Queiroz, 16 anos, é uma adolescente vaidosa, alegre e muito bonita. Ela gosta de se arrumar e estar bem vestida. Para muitos, o autismo nem é percebido e, por isso, ela e sua mãe passam por muitas situações constrangedoras, como a descrita acima.
Em outros casos, é quando o autismo aparece que acontece o julgamento. Andando na rua com sua mãe, Amanda não estava num bom dia, como acontece com qualquer pessoa, e por isso estava estressada. As pessoas ao seu redor passam olhando feio e, mesmo sem dizer uma palavra, é como se falassem “menina sem educação”. Para muitas pessoas, quando uma pessoa autista está em crise, é apenas uma birra ou falta de educação dos pais. A tolerância, segundo a mãe de Amanda, é o que mais falta na sociedade.
Na vida de Amanda, o masking não foi algo relatado pela família. Diagnosticada aos três anos, seus pais sempre repararam que a filha tinha comportamentos um tanto infantil para a idade. “Mesmo ela sendo toda independente, ela ainda é muito infantil e, por exemplo, não despertou para sua adolescência. Eu nunca vi ela mascarando os sintomas”, conta a mãe.
Do outro lado da moeda, Karina Rodrigues Silva Queiroz, 42 anos, também cita um caso de masking que envolveu uma garota que estuda na mesma escola de sua filha: “Eu conheci uma menina que estuda na mesma escola que a Amanda. A garota tinha quinze anos e escondia que ela tinha autismo. Este acontecimento foi um problema para a escola porque muitos achavam a menina estranha e que ela tinha inúmeras dificuldades. Nem a escola e nem os colegas, ninguém sabia, nem a própria menina sabia que tinha autismo.”, explica.
Intervalo: O tempo passa, mas o preconceito persiste
Janete de Maria Ribeiro Moura, 53 anos, é mãe de duas meninas especiais. Uma é a sua filha e a outra, agora também filha, é a sua irmã Jane. Por mais que recordar sobre casos de preconceito custe caro para Janete, ela insiste em frisar que o presente encontra o passado dentro do julgamento.
A irmã Jane de Maria Ribeiro Moura, que inicialmente foi diagnosticada com lesão cerebral devido ao fato de que na época não existia um diagnóstico de TEA, conseguiu o verdadeiro diagnóstico após uma série de exames quando já tinha completado 20 anos. Hoje, aos 48 anos, ela é uma mulher autista de grau severo.
Os primeiros anos sem o diagnóstico correto foram preenchidos por memórias dolorosas. Janete recorda que durante a infância, momentos de desamparo eram comuns: “Aconteceu um fato da gente estar passeando com a Jane na rua e autista, de repente, por qualquer coisinha que muda, ele fica nervoso e agressivo consigo mesmo e com o outro. E aconteceu um fato desse. A minha irmã ficou agressiva na rua, começou a puxar o cabelo da minha mãe e a gente começou a pedir ajuda. As pessoas não ajudaram de forma alguma, elas se afastaram.”, desabafou.
Com a filha Giovanna já com 14 anos, ao olhar para a situação da irmã Jane de 14 anos, ela percebe que a informação sobre o TEA é a principal força de combate ao preconceito. Hoje, a situação é diferente. Mas só em um “grau” diferente. “Como as pessoas estão mais acostumadas com temas como inclusão e convivência, tudo isso modificou muito. Apesar de que ainda as pessoas tenham preconceito, na época da minha irmã não, as pessoas tinham é medo”, disse Janete de Maria.
Ato 3: O retrocesso caminha na direção da segregação
“O que é inclusivismo? A criança com deficiência é colocada dentro de uma sala de alunos sem deficiência. Ela não aprendia, ela ‘atrapalhava’ – entre aspas, essa palavra eu falo com muito cuidado – ela atrapalhava o aprendizado dos outros, porque a professora não tinha equipe, não tinha conhecimento para dar a ela atenção especial”
No dia 12 de agosto, o Ministro da Educação e pastor evangélico Milton Ribeiro afirmou que a inclusão de pessoas com deficiência era algo que “atrapalhava” no desenvolvimento da educação brasileira.
Para Janete, ouvir as palavras do ministro representou muita tristeza e falta de conhecimento. Ao longo da vida de sua irmã, a falta de inclusão prejudicou apenas o convívio social e desenvolvimento, mas também mostrou que seus direitos não foram respeitados. “A inclusão teria feito a diferença na vida da minha irmã. Jane não teve essa oportunidade, ela foi segregada e recebia o atendimento de professoras, com três ou quatro alunos, todos com alguma deficiência. A única oportunidade que ela tinha de conviver com algo diferente era por meio dos professores e dos funcionários da escola. Ela nunca conseguia brincar com outras crianças sem deficiência e isso fez muita falta.”, relata Janete.
Encerramento: Elas existem e agora sabemos disso!
Segundo um estudo publicado, em 2020, no Journal of Autism and Developmental Disorders, a proporção entre meninos e meninas autistas pode ser de 1,8 para 1. O que representa um aumento considerável entre o último dado proporcional de 3 pra 1.
Cada vez mais os profissionais vêm se especializando e abandonando a falsa crença que gera o pensamento automático de descartar a possibilidade de autismo nas meninas e vem utilizando técnicas e testes adequados e voltados à elas.
Mas ainda temos um caminho científico e metrológico a percorrer para melhor diagnosticar e auxiliar essas crianças e famílias. A cada passo, Amandas, Janes, Marias, Anas e tantas outras poderão não apenas receber seu diagnóstico para procurarem uma qualidade de vida melhor, mas também poder reivindicar e lutar por seus direitos.
Agora a máscara ficará apenas para os palcos!
Fim.
Por Sara Meneses, Sandy Melo e Ana Clara Botovchenco
Supervisão de Luiz Claudio Ferreira