O ano é 1954. Um grupo de homens brancos escuta um som afro-americano contagiante e inédito no rádio, disponibilizado pela gravadora Sun Records. Não se dá crédito algum à qualidade da música, afinal, está sendo vocalizada por um negro. Pelo menos, é isso o que se imagina. Quando um dos homens explica que o responsável por trás da voz é um jovem branco de Memphis, Tennessee, chamado Elvis Presley, de repente a música torna-se muito mais interessante. E naquele momento, brilha um par de olhos em específico: os do coronel Tom Parker.
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É a partir dessa premissa que se desenvolve a cinebiografia Elvis, dirigida pelo cineasta Baz Luhrmann (Moulin Rouge, O Grande Gatsby) e marcada para estrear nas telonas brasileiras nesta quinta, com distribuição da Warner Bros Pictures. Há um desafio central para uma obra como essa: entregar originalidade e identidade própria mesmo diante de tantas cinebiografias sobre uma figura já tão imitada ao ponto de exaustão. Luhrmann faz uma aposta (e acerta) ao trazer a narrativa pela perspectiva do coronel Parker.
Enredo e estética
Em meio aos altos e baixos da vida pessoal e profissional de Presley (Austin Butler), temos como principal foco a relação controversa e tumultuada entre ele e seu empresário. Com o coronel (Tom Hanks) como narrador, a história mergulha de cabeça na complexidade dessa dinâmica, bem como nos caminhos percorridos pelo cantor no mundo da música, da ascensão à fama até a decadência. O filme traz à tona a problemática que muitos profissionais do entretenimento enfrentaram e enfrentam, seja com pessoas no trabalho, seja com os próprios demônios. Não é à toa que muitos, inevitavelmente, tem o mesmo fim melancólico de Elvis.
A tentativa de pincelar todas as etapas da trajetória de um dos artistas mais influentes do mundo em meras duas horas e quarenta minutos, ao mesmo tempo em que são introduzidas as variadas facetas do homem para além dos palcos, foi mais uma aposta de Baz Luhrmann. A trama se apressa no decorrer do primeiro terço do filme, ao condensar momentos desde a infância de Elvis até sua morte precoce, o que dificulta um pouco a realizar conexões naturais entre o acontecimento presente e o próximo. Em um piscar de olhos, a transição aconteceu.
Exuberância
No geral, sob os holofotes do longa está o estrelato sem precedentes do rei do rock n’ roll, mas alguns aspectos cruciais, tão bem produzidos na cinebiografia, deixaram um gostinho de quero mais. A história dos EUA assistia a uma virada cultural inigualável na época. Nascido em Tupelo, Mississipi, Elvis Presley se mudou com a família para uma comunidade negra em Memphis ainda muito novo. Este foi o cenário de seu primeiro contato com a música, onde o country, rythym and blues e o gospel afro-americano o impactaram profundamente.
Presley não foi o criador do rock, mas foi um importantíssimo precursor da miscigenação do estilo musical em larga escala. No filme, vemos o jovem artista transitando espontaneamente entre comunidades, para além das barreiras socioculturais. A exaltação musical do mesmo acima dos criadores das técnicas que ele usava é pincelada no enredo. Os períodos em que esteve no exército e tentou a carreira de ator também recebem menção honrosa, mas em um breve panorama sem grande enfoque.
É na exuberância visual e sonora que se encontra a marca registrada de Luhrmann, sua verdadeira zona de conforto e expertise. O roteiro assinado por ele, ao lado de Sam Bromell, Craig Pearce e Jeremy Doner exala o melhor da extravagância, digna das performances do rei do rock, sem contar nos clássicos do repertório musical – Suspicious Minds, Hound Dog, Can’t Help Falling in Love, Jailhouse Rock, Unchained Melody -, que enchem os ouvidos. O conhecimento prévio de musicais, como Moulin Rouge, também caiu ao cineasta como uma luva.
Afinal, a criação da ambientação glamurosa e imersiva foi determinante para transmitir o magnetismo e carisma que Elvis Presley tinha como artista. A facilidade quase cômica de cativar o público com a menor das ações, de uma mexida do dedo mindinho a uma requebrada energética dos quadris, está presente e dialoga de forma harmoniosa com o espetáculo teatral regido por Baz Luhrmann. Mas é evidente que boa parte dos créditos para isso também reside na performance surpreendente.
Atuações
Não há como negar que a personificação de uma figura de tanta influência venha carregada de altas expectativas. A Austin Butler foi dado o desafio de se destacar e traduzir o caráter multifacetado de Elvis. E ele o fez da maneira mais natural possível. O ator estabeleceu uma relação notavelmente intimista com o personagem: o sotaque sulista, o timbre de voz perfeito, os trejeitos de palco e o exibicionismo se misturam numa interpretação que faz jus à forma de ser e se portar do biografado em questão.
Butler canta, dança e capricha nos famosos requebrados provocativos, que tanto causavam polêmica e comprometiam a “inocência na América”. Para as gerações mais novas (como a minha) que não conheceram o fenômeno irresistível que era Elvis Presley, a atuação do rapaz esclarece o motivo.
Há quem defenda que Austin Butler foi um Elvis melhor que o próprio Elvis. Visão bem polêmica e controversa, mas com o respaldo que, de maneira inédita e por um viés narrativo original, é possível conhecer o homem para além da lenda. O ser humano para além da fama. Butler traz um Elvis vulnerável, sensível, figura passiva da própria história. E a razão disso, já sabemos, tem um nome: coronel Tom Parker.
Manipulações
Quase não se reconhece Tom Hanks por baixo de toda a produção do visual caricato do empresário traiçoeiro. Apesar disso, a performance está lá e é inconfundível. Parker se descreve como um ilusionista dentro do espetáculo circense que é o showbusiness. E é exatamente assim que ele se comporta: hipnotiza, manipula, persuade. Com a história contada pela perspectiva do coronel, Tom Hanks quase te convence que ele realmente se importava com o bem estar de Presley acima de tudo. Quase.
“O ilusionista ataca novamente”, falava Elvis a cada nova proposta que o empresário trazia a ele. A mercê desses “ataques” e truques, genuinamente acreditou que o coronel fazia o melhor para ele quando, na realidade, brincava de malabarismo com a carreira do artista em prol do próprio benefício financeiro. Vale menção à Suspicious Minds: “Estamos presos em uma armadilha que não consigo sair”. Se a armadilha é a relação profissional abusiva, o álcool e medicamentos prescritos que o levaram à morte ou o amor incondicional contido na canção, fica em aberto para interpretações de quem assiste ao longa.
Ficha técnica
Direção: Baz Luhrmann
Roteiro: Baz Luhrmann, Sam Bromell, Craig Pearce e Jeremy Doner
Produção: Catherine Martin, Gail Berman, Patrick McCormick e Schuyler Weiss
Elenco: Austin Butler, Tom Hanks, Olivia DeJonge
Duração: 159 min
Gênero: biografia e musical
Classificação Indicativa: 14 anos
Origem: Estados Unidos
Por Giovanna dos Santos*
* Assistiu à pré-estreia a convite da Espaço/Z
Trailer e fotos: Divulgação
Supervisão de Luiz Claudio Ferreira