No caminho de terra até a escola, mais de 30 graus, com sol a pino sem nuvens. A seca e arbustos do cerrado eram protagonistas que margeiam o sonho de quem resolveu estudar. A terra nem incomoda os chinelos e os sapatos de quem passa por ali. As árvores já sem folhas do fim de inverno nem cheiram a frutos. O odor é de queimadas em uma vista acinzentada. Um pequeno portão de pouco mais de um metro de altura, feito com grades de ferro e uma placa branca pintada pelo tempo e pela terra que voa até lá, e com letras pretas em que se lê “Seja bem vindo a esta Escola do amor!”. Uma mensagem de acolhimento para adentrar na realidade das 269 crianças e adolescentes da região rural do Jardim Ingá, entre Valparaíso e Luziânia. Do Plano Piloto até chegar à Escola Maria Teixeira são 48,3 Km.Assista ao documentário sobre a escolahttps://youtu.be/vNMLQBiELX0Para alguns alunos, o trajeto de casa para a escola é proporcionado pelo único ônibus que o governo disponibilizou. Para outros, o caminho até a escola é feito a pé, passando por cima do rio Palmital que corta a região. O calor, durante a secura, ou a chuva no começo e no final do ano, fazem parte do cenário desse caminho de obstáculos em pedra ou lama. Nas mãos, os cadernos que não sujam no caminho. Na mochila, tudo preparado para o momento mais importante do dia. Para as crianças, fazem parte do detalhe da estrada, porque agradecem todos os dias por estarem estudando, oportunidade que seus pais, por exemplo, não tiveram.João*, de 16 anos, é um dos estudantes que participa da turma “Borboleta”, criada para atender alunos com necessidades especiais. Ele relata que jamais gostaria de deixar a escola, porque lá consegue aprender e brincar muito. “Prefiro ficar por aqui”, afirmou o aluno da turma “Borboleta”. Aliás, este é apenas um dos nomes criados para diferenciar as turmas que vão do 1º ano até 5º ano do ensino regular. A escola não é a favor da denominação por “ano”, justificando que ao utilizar nomes relacionados à natureza, os alunos não associam as turmas à superioridade e sim às diferenças.A fundadora e diretora voluntária, Silvana Patrícia, estava pronta para receber mais uma pessoa que iria tentar entender como funcionava o método de educação da escola. “Aceita um café com pão de queijo?”,perguntou a diretora. “Produzimos aqui na escola, é tudo caseiro”, afirmou. O pão de queijo, quentinho e feito na hora, faz parte da “Fábrica de Pão de Queijo da Maria”, um dos projetos realizados em busca da auto-sustentação da escola.Quando a instituição passava por dificuldades extremas e Silvana estava procurando soluções para não fechá- la, a professora foi a um laboratório especializado fazer exames de sangue de rotina, quando viu os pães de queijo que o laboratório oferece pós-exame e pensou: “e se a gente vendesse pão de queijo?”. O projeto foi apenas uma das ideias criadas para gerar oportunidades de emprego e renda para a própria comunidade, como os pais de alunos. Além disso, a escola ainda promove o “Cuidar de quem cuida”, projeto que fornece atendimentos ginecológicos, urológicos e psicológicos para os pais e responsáveis dos estudantes.Geografia e históriaO pão de queijo combinou perfeitamente com o ar do “bosque do cerrado” que cerca o espaço escolar. Mas, o arranjo mais inusitado foi a descoberta de que a escola é toda dividida em casas. Cada sala de aula é uma casinha individual, pintada com uma cor específica e com detalhes especiais de acordo com a turma que está nela. O conjunto de casinhas forma uma vila harmoniosa, que além de reforçar o conceito da convivência entre os diferentes, remete a uma pequena cidade de interior de característica bucólica, lembrando o fato de que é localizada na zona rural. O objetivo é simples: fazer com que os alunos se sintam em casa, já que muitos deles nem tem um lar propriamente dito.O espaço rural pertencia à família de Silvana e era apenas uma chácara de lazer aos finais de semana quando pensaram: “isso aqui deveria servir para algo a mais. Uma escola! Por que não?”. Tudo começou com apenas uma casa construída que serviria para abrigar no máximo 30 pessoas. A maior surpresa foi perceber a quantidade de crianças que nunca haviam pisado em uma escola, relatou Silvana. “Nós andamos por toda a região, batendo de porteira em porteira, descobrindo aquela quantidade de crianças e sem saber se daria certo, sem saber se os pais acreditariam em nós”, relembrou.
Em 7 de fevereiro de 1994, a cena na rua de terra do Jardim Ingá era uma só: mães a pé com crianças, pais com filhos na carroça, meninos com bicicletas passando pelo rio, todos prontos para entrar na escola Maria Teixeira às 8h da manhã com o sonho daquele lugar ser a esperança do futuro da comunidade dali. Eram 26 crianças à espera de adentrar no novo lar.MatemáticaExistem mais de 11 mil crianças sem educação infantil em Luziânia, de acordo com a Pesquisa Metropolitana por Amostras de Domicílios da Codeplan. O susto de Silvana ao perceber a quantidade de pessoas sem estudo serviu de estímulo para tentar criar a oportunidade de acesso à educação para os moradores da região rural do Jardim Ingá, revertendo a situação. O ensino gratuito abre portas, mas traz consequências. A escola sobrevive de doações de terceiros.O governo, atualmente, dá metade da merenda e disponibiliza um ônibus escolar. Ao ser questionada sobre o voluntariado dentro da Instituição, Silvana foi direta: “todos os funcionários são remunerados, dos professores à equipe da limpeza, por meio de doações e frutos do trabalho das oficinas.” É assim que surge uma escola rural no Brasil, pessoas querem estudar, mas não tem onde, portanto, alguém decide criar com as próprias forças uma oportunidade para a comunidade, então recebe autorização e apoio mínimo do poder público.O gasto mensal da escola é, em média, R$ 60 mil. As doações recebidas mensalmente provém de mais de 100 pessoas físicas que conseguem contribuir com R$100 a R$1 mil. Outras doações que a escola recebe são de materiais e serviços. No dia da visita à escola, uma estudante universitária estava acompanhando as crianças e ajudando em algumas tarefas. Jéssica Ferreira, por exemplo, estava há uma semana dormindo em um colchão no quarto disponível para crianças que passam mal na escola.A estudante de engenharia florestal ressalta que uma escola rural é algo que nunca fez parte de sua realidade e ter a oportunidade de viver ali por alguns dias foi essencial para o desenvolvimento pessoal. “Elas (funcionárias) têm um olhar para o todo. O trabalho com as mães, o olhar para a comunidade, a intenção delas de tornar a área verde em um parque ecológico, de preservar o cerrado, os atendimentos ao público…”, relatou.Enquanto apresentava cada ambiente dentro do terreno da escola, a diretora foi interrompida diversas vezes por alunos. Eles não queriam apenas aparecer e dar um tchau para a câmera que filmava um pouco da realidade deles, mas também dar um ‘bom dia, tia. Seja bem vinda! Você está bem?’. Uma recepção calorosa que representou claramente uma educação baseada no respeito ao próximo, oferecida pela escola.O ensino rural deve ser adequado às peculiaridades da vida no campo, de acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, e existem três objetivos propostos na Lei para adaptar a metodologia. Mas segundo o professor de pedagogia, Willian Resende, docente da Universidade Católica de Brasília, os desafios já começam nas próprias metas. “Primeiro, a baixa escolaridade da família, quando por exemplo um professor manda um recado na agenda e não tem resposta, a mãe não responde assinado, não comparece na escola como o recado pedia para comparecer à escola classe. Mas quando vai investigar, a mãe era analfabeta e isso acontece bastante na educação rural”, relatou.Os estudantes da Maria Teixeira aprendem todas as matérias exigidas pelo Ministério da Educação (MEC) e mais três disciplinas que foram incluídas no currículo escolar: Libras; Respeito à Natureza e Ética do Amor. A diretora explica que o objetivo da escola sempre foi ensinar os pequenos alunos a praticar o simples ato de amar. “As crianças aprendem, como disciplina, que a gente pode ajudar o outro, que a gente deve, porque a gente também precisa de ajuda. Que todos devemos ser solidários. Que a gente tem que respeitar o outro na diferença que ele tiver, de que ninguém é mais importante que ninguém”, disse Silvana enquanto continha a emoção.LibrasA professora Silvana teve a experiência de receber alunos surdos nas turmas da escola. Isso fez com que a fundadora levasse a linguagem dos sinais automaticamente para o currículo da Maria Teixeira. Mas, a iniciativa não foi apenas por causa dos deficientes auditivos. Silvana explica que libras é a segunda língua da escola, ou seja, todas as crianças são ‘alfabetizadas’ em libras. “O benefício da linguagem para quem tem dificuldades motoras é ótimo. Estudar libras trabalha o lado psicomotor da criança, além da lateralidade e da espacialidade”, ressaltou.
José Neres é um dos alunos que não é surdo, mas utiliza a linguagem dos sinais para se comunicar. Ele tem paralisia cerebral, que afeta a parte comunicacional da fala. O aluno, hoje com 18 anos, não se comunicava até entrar na escola. Silvana relata que aprender libras foi uma forma de salvar a vida social de José, por exemplo, porque hoje ele consegue estimular o pensamento, interagindo com as pessoas e até criando narrativas, coisas que antes ele era impossibilitado de realizar.Respeito à NaturezaDentro dessa disciplina com olhar ambiental, os alunos participam de dois grandes projetos criados com o intuito de salvar a natureza. O primeiro pretende salvar o rio que envolve o terreno da escola. Várias instituições e ONG’s ambientais já visitaram o espaço e promoveram junto às crianças um dia de limpeza do rio, reciclando os resíduos e transmitindo informações sobre sustentabilidade. O segundo projeto diz respeito, principalmente, à preservação do cerrado. Para chegar à escola, as crianças passam todos os dias por um caminho cercado de árvores e arbustos típicos da vegetação do centro-oeste, mas a época da seca faz com que a cena se modifique e as queimadas passam a fazer parte do cotidiano. Por isso, a escola criou um movimento com a comunidade para que não desmatem a área rural.Enquanto as professoras passavam conteúdo no quadro, o barulho que distraía as crianças não vinha das conversas paralelas e sim do fogo se alastrando por todas as árvores fora da escola. Os gritos de animais à procura da sobrevivência deixaram as crianças espantadas. A professora relata que houve quem chorou pedindo socorro porque não queriam que a natureza chegasse ao fim. “As crianças sabem que os pássaros tinham muitos ninhos ali, então foi um sofrimento muito grande para elas”, relatou Silvana.Ética do AmorPaulo Sérgio Gomes é portador de síndrome de down e estuda na escola há 25 anos, a idade da Instituição. A diretora relata que ele foi o primeiro aluno da educação especial da Maria Teixeira. Segundo ela, a família relata que Paulo melhorou bastante a personalidade ao entrar para a escola. Hoje, ele ajuda a família nas tarefas de casa e consegue se relacionar com todos.Não importa a idade ou em qual série o aluno se encontra, na escola, todos aprendem acerca do assunto fundamental: respeito ao próximo, solidariedade e amor. É nítido o quanto os alunos possuem respeito pelos mais velhos e estão sempre dispostos a ajudar, seja quem for. A diversidade de pessoas estimula o ensino do amor ao próximo. “Aqui na Maria Teixeira, temos alunos com muitas diferenças. Autistas, surdos, cadeirantes, alunos com paralisia cerebral e outras deficiências mentais também”, explicou.Diferentemente das escolas tradicionais, tudo que se aprende na sala de aula é colocado em prática pelos estudantes, quando possível. Desde à divisão de materiais até a reciclagem do papel utilizado. Silvana ressalta que as crianças precisam aprender desde cedo que elas podem e devem mudar o mundo. “Eu tento deixar bem claro que fora daqui não é tudo bonito, aliás, nem preciso falar muito, porque elas já observam e já fazem o que aprendemos aqui”.Em meio às lágrimas, a diretora relatou as dificuldades. Para ela, uma das piores dores que sente é quando precisa dizer um “não” aos pais que batem na porta da escola com o sonho de poder matricular os filhos. Silvana explicou que não há vagas para todos, por questões financeiras e às vezes, por não poder oferecer o atendimento especializado àquela criança.Por exemplo, quando uma criança possui uma deficiência mental que requer cuidados especiais e individualizados. “Eu costumo dizer um ‘por enquanto’, eu nunca falo um ‘não’ definitivo, porque se a gente não tem um atendimento para aquela pessoa especificamente, ela passa a ser nosso ‘carro chefe’ para criar o novo atendimento em breve. Isso não é falta de vontade, é falta de condição financeira, de manutenção”, explica.As crianças que moram na região metropolitana de Brasília sofrem com a falta de escolas rurais. Em oito anos, o estado de Goiás fechou mais de 150 escolas no campo. Na cidade de Luziânia, por exemplo, atualmente há 10 escolas rurais. Já no município vizinho, Santo Antônio do Descoberto, apenas três estão em funcionamento, de acordo com o Censo de 2018, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Se existe uma grande quantidade de histórias que contam a dificuldade de locomoção do trajeto casa-escola, imagine o número de histórias que relatam a dor de quem sequer consegue a oportunidade de acessar a educação.CiênciasJá pensou em ir a uma escola fazer a matrícula do filho e ter que “autenticar” aquilo com sua impressão digital por não saber assinar seu próprio nome? Esta era uma situação comum na época de matrículas da Maria Teixeira. Por isso, a escola atualmente possui a turma “Esperança” que reúne adultos e idosos que nunca foram alfabetizados.Os quinze alunos da turma Esperança se reúnem 2 vezes na semana para aprender aquilo que nunca antes tiveram contato. Eles saem de suas casas, localizadas na região rural do Jardim Ingá também, ao encontro dos professores que alfabetizam durante 5 anos. A faixa etária dos alunos desta turma é entre 50 a 78 anos.Ao se falar de educação, como diz a fundadora da escola rural Maria Teixeira: “A esperança não é a última que morre, ela nunca deve morrer”.
Por Caroline César