Premiado em três categorias no 50º Festival de Brasília (roteiro, júri popular e melhor atriz), no ano passado, o filme “Café com Canela” finalmente estreou no circuito nacional. Além disso, o longa fez parte da seleção oficial do International Film Festival Rotterdam e conquistou o Prêmio Petrobrás de Cinema. Um trabalho que, segundo a crítica especializada traz representatividade e muito afeto nas cenas. O trabalho retrata a vida da população do Recôncavo Baiano tendo como narrativa principal a vida de duas mulheres negras, a comerciante Violeta e a professora dela Margarida (que sofre com a perda prematura do filho). Em meio a faxinas conjuntas dentro de casa, visitas e cafés com canela, essas mulheres iniciam, juntas, um processo de transformação.
Com elenco predominantemente negro, menções às religiões afro-brasileiras, abordagem da temática LGBTQ e empoderamento feminino, tanto nas telas quanto nos bastidores, o filme foi dirigido por Ary Rosa e Glenda Nicácio, cineasta negra, mostrando as dores e alegrias do cotidiano, com uma evasão de tempo e lugar quando se trata da população nacional.
O trabalho conta com uma fotografia artesanal típica de filmes independentes fazendo com que o expectador se sinta mais próximo dos personagens e suas histórias, fazendo-o ter a sensação de estar espiando-as de perto, como se não houvesse uma tela a separar.
A forma de filmar dos dois foi novamente reconhecida no festival deste ano (51ª edição). Ary e Glenda concorrem com o filme “Ilha”, “lugar onde quem nasce não pode sair. Emerson, nascido na ilha, sequestra um premiado cineasta e com ele recria a realidade”, aponta a sinopse da obra.
Entrevista: “O encontro e o afeto movem esses personagens”, diz o diretor
Agência de Notícias UniCEUB – Quais foram os critérios utilizados para escolher a temática de Café com Canela?
Ary Rosa – “Café com Canela” nasceu dessa vontade de desenvolver um filme que se aproxime da cultura, das tradições e do cotidiano do lugar que escolhemos viver e construir nossa produtora: o Recôncavo Baiano (mais especificamente as cidades de Cachoeira, São Félix e Muritiba). A vontade de contar uma história que passa pela tradição e costumes do Recôncavo, mas que tem sua força maior o dia a dia de pessoas comuns que sofrem, sentem dor, se ajudam, tomam uma cervejinha no fim da tarde. O encontro e o afeto movem esses personagens; o Recôncavo traz a vibração para suas vidas e os fazem únicos.
Agência de Notícias UniCEUB – Quanto tempo durou a produção de Café com Canela?
Ary Rosa – Café com Canela foi contemplado pela política de Arranjos Regionais da ANCINE e do FSA em parceria com o Governo do Estado da Bahia através da TVE/IRDEB. Apesar do resultado ter sido em 2014, iniciamos a produção no segundo semestre de 2015, gravamos em janeiro de 2016 e finalizamos a pós produção em fevereiro de 2017, portanto, entre a captação e a finalização do filme, cerca de dois anos.
Agência de Notícias UniCEUB – O que significou para vocês ter um filme premiado e ser indicado consecutivamente para o Festival de Brasília e quais são suas expectativas?
Ary Rosa – Muita felicidade, receber prêmio do júri em Brasília (melhor roteiro e melhor atriz – Valdinéia Soriano) é um reconhecimento importante para o cinema que está sendo feito no interior do país (Recôncavo da Bahia). No Festival de Brasília, também ganhamos o prêmio de Melhor Filme pelo Júri Popular, este, com uma felicidade dupla: primeiro o reconhecimento do público que é muito bom; segundo, pelo Prêmio de Cinema Petrobrás que garantiu distribuição do filme para tantos lugares que sem esse aporte não seria possível. Hoje estamos em cartaz em Brasília, em Salvador, Fortaleza, Recife, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Vitória, Santos e Curitiba, em breve chegaremos em mais cidades. Chegar esse ano no festival com o filme “Ilha” é motivo de muita felicidade voltarmos a Brasília com um filme novo, não temos expectativas, apenas, torcemos para que o público curta nosso trabalho.
Agência de Notícias UniCEUB – Por que a escolha de um elenco predominantemente negro em Café com Canela?
Ary Rosa – O Recôncavo Baiano é composto por uma população majoritariamente negra, já que contamos histórias deste local, nada mais correto que compor o elenco com atores negros. Para além disso, mais da metade da equipe é formada por profissionais negros, entre eles a diretora Glenda Nicácio, assim, entendemos que é fundamental trazermos histórias que sirvam para além da emoção e/ou entretenimento, mas que também seja ferramenta política de representação e representatividade.
Agência de Notícias UniCEUB – Como definiu a fotografia de Café com Canela?
Ary Rosa – – Desde o início nos decidimos por uma fotografia que em primeiro lugar conte essa história e aproxime o expectador das personagens e do local que retratamos, para isso nos demos o direito de experimentar o máximo possível (não só na foto, mas no som, na arte e na edição também).
Agência de Notícias UniCEUB – Você se identifica com o enredo de Ilha?
Ary Rosa – De alguma forma sim, o protagonista Emerson, de forma extrema e predestinada (já que não se pode sair da Ilha, no filme), repete um pouco do que fizemos através de nossa escolha (permanecer à margem, fora do eixo – no Recôncavo da Bahia) e contar histórias a partir do ponto de vista desses lugares, como fizemos em “Café com Canela” (exaltado por muito por essa característica) e tentamos fazer novamente em “Ilha”.
Agência de Notícias UniCEUB – Quais foram suas inspirações para a construção de Ilha?
Ary Rosa – “Ilha” é um filme dirigido por Glenda Nicácio e por mim num momento complexo (para não dizer trágico) da história brasileira. Gravamos o filme em meio aos terríveis retrocessos sociais e culturais do Brasil. Acredito que a maior inspiração foi a falta de perspectiva de um país. Emerson e Henrique, são personagens que estão presos em uma ilha, e fazem um filme quase que na clandestinidade – uma metáfora dura dos tempos -, tendo como respiro apenas o possível afeto que eles estabelecem entre si.
Agência de Notícias UniCEUB – Ilha tem o mesmo modelo de fotografia de Café com Canela? Se não, como é a fotografia do longa?
Ary Rosa – Não. Apesar da equipe ser basicamente a mesma nos dois filmes, Glenda e eu não pensamos nosso ofício de direção como “estilo”, mas como “o que o filme pede?”. Nesse caso, “Ilha” é um filme que precisa parecer que está sendo feito diante do espectador (já que a história fala de dois cineastas que estão produzindo um filme diante da plateia). Para tanto, o filme é basicamente composto por planos sequências e muita interação direta entre os personagens e a câmera (que também é um personagem na narrativa).
Por Ana Clara Avendaño
Trailer e fotos: Divulgação