Decretada a primeira quarentena no estado de São Paulo. A metrópole que nunca dorme inquietou-se. As estações e vagões de metrô enérgicos, depararam-se com o silêncio atormentador da dúvida. Sem entendermos muito ao certo e com medo do desconhecido, meu marido e eu nos isolamos em casa com as nossas filhas (uma, com 4 meses, e a outra com 3 anos), sem saber se isso duraria 3 semanas ou 2 meses — nem em nossos sonhos mais catastróficos diríamos que durariam quase 2 anos.
Existe uma frase judaica que diz que quando se pensa que se sabe de todas as respostas, vem Deus e muda as perguntas. Foi exatamente isso, sem tirar nem pôr, o que nos aconteceu. Mesmo que ansiosos e inseguros, tínhamos quatros olhinhos atentos a tudo o que fazíamos. Ainda assim, elas nos mostravam que a vida tinha que continuar, mesmo que fosse entre algumas paredes e janelas.
Do lado de fora, apenas o piado dos pássaros era audível, e mesmo eles pareciam não entender tanta monotonia que se estabelecia por entre os arranha-céus da cidade. Contudo, desfrutavam de cada minuto silencioso. De nossas janelas, enxergávamos pedaços de céu e, mesmo com a limitação, era possível vislumbrar o azul puro do campo, e não o bom, velho e melancólico acinzentado das grandes metrópoles.
Um silêncio reconfortante e assustador predominava. Toda a atmosfera fazia com que nos sentíssemos num 1° de janeiro, entretanto, era março. Pós-carnaval. Os dias eram semelhantes e se repetiam num looping de impotência. Moana, Bolt, LadyBug e a Patrulha Canina toda não davam espaço para as notícias ruins que eram expostas na televisão.
Sempre éramos salvos por super-heróis de quatro patas, por uma menina que defendia a Mãe Natureza com a ajuda de um homem que se transformava em tubarão, e por uma joaninha e seu amigo gato — a vida era mais simples aos olhos da nossa pequena grande menina de 3 anos.
Logo vi aquela mãe rigorosa quanto ao uso de eletrônicos que havia em mim dando espaço para a mãe que viu neles uma oportunidade de fuga. Tive, então, de aceitá-los sem pestanejar.
Neste período de enclausuramento, aprendi a cozinhar, a entreter, organizar e amamentar. Tudo ao mesmo tempo!
Em um dia como todos os outros, eu estava brincando com as pequenas na varanda do nosso apartamento e estávamos nos divertindo. Foi um dia bom. De maneira espontânea, tentei colocar a cabeça para fora da janela, dar aquele suspiro de liberdade, mas fui interrompida: a rede de proteção segurou a minha cabeça e meu suspiro virou um lamento. Sentei no chão e me senti como um pássaro preso em uma gaiola.
Desde o primeiro dia de isolamento, eu pensava nos meus avós. Eles passaram pelo Holocausto, pelo horror da guerra e, por conta disso, eu não me dava ao direito de cair em sofrimento.Minha avó, que faleceu há poucos anos, sempre foi uma pessoa otimista, que amava a vida e, para mim, ficou esta lição. Nada mais importa além da vida, porém aquela sensação de cárcere estava me atrapalhando profundamente.
Como sou artista, o meu home office não tinha uma rotina certa. A prioridade se tornou o trabalho do meu marido. E o meu, talvez entre as sonecas das meninas e sempre durante as madrugadas, quando todos dormiam, eu podia ir além e explorar a minha arte
Naquele mesmo dia, fiquei sentada, olhando a rede e através dela. Chegavam notícias tristes de mortes de pessoas distantes que, no momento, se pareceriam com amigos próximos; pessoas perdendo seus empregos, passando fome… Pessoas que já eram solitárias caíram em solidão profunda. Era tudo um completo desconhecido.
Me lembro de que no desenho da menina amiga do homem tubarão eles viviam em uma linda ilha e, sempre que fechava meus olhos, imaginava quando poderia ir com a minha família a um lugar bonito como aquele novamente… Quando a minha caçula poderia correr livre pela praia… Quando a minha primogênita poderia salvar o mundo com a força ninja que só ela possuía. Essas questões me faziam doer o peito.
A trilha sonora de Moana me acompanhou por um bom tempo, por incrível que pareça. Ela me trazia a esperança naïf de tempos melhores. No entanto, diariamente rolavam lágrimas de medo e, ao mesmo tempo, de agradecimento. Agradecimento, sim. Estávamos todos com saúde. Juntos. Presos em nossa casa. Nossa casa! Tínhamos esse privilégio. Por isso, em meio a tantas notícias ruins, minha vontade era gritar: “Vai ficar tudo bem!” para toda a vizinhança ouvir.
E foi por meio da rede que me aprisionava que resolvi exclamar esse pensamento. Em um ímpeto, peguei todas as fitas de cetim que tinha em casa e comecei a bordar o entrelaçado de polietileno à minha frente. Não fiz esboço, não sabia se daria certo e não enxergava nada além do meu otimismo em relação a tudo o que eu estava vivendo naquele instante. Meu marido sabia que tinha se casado com uma artista, mas muito provavelmente, naquele instante, estava em dúvida se eu estava em surto ou em um momento de criação. Mal sabia ele que um anda ao lado do outro.
Foi curioso como, com este ato, toquei a vida de pessoas que estavam longe, porém perto. Vizinhos desconhecidos que acompanhavam a minha rotina, que trocavam olhares e, de vez em vez, um discreto aceno, e até mesmo os pedestres que se permitiam andar pelas ruas olhavam cheios de curiosidade. Estranhos que através da arte viram seu cotidiano se transformar com tamanha sutileza… A arte e o seu poder ilimitado que aproxima; salva.
Após esta intervenção, senti necessidade de me aprofundar cada vez mais neste assunto e pesquisei a respeito do isolamento nos grandes centros urbanos. Compreendi que atrás das janelas existiam pequenos mundos, com todas as suas memórias, conquistas, dores e amores.
Fui a depósitos de demolição e resgatei janelas… Resgatei sonhos! Eternizei e ressiguinifiquei esse período histórico através desse objeto artístico tão unicamente expressivo. A janela é um convite à expansão da consciência, uma possibilidade de descobrir o novo, de deixar que a criatividade desabroche. É uma oportunidade que a vida oferece, um símbolo de libertação ou de evasão, embora também permita a entrada de novas ideias ou experiências.
Eu abri a janela e enxerguei um mundo de possibilidades e ela se abriu para mim, me mostrando que, na verdade, estava tudo aqui dentro.
Sobre:
Taly Cohen é uma artista abstrata contemporânea representada pela galeria Chase Contemporary em Nova York e PicTrix em Lausanne, Suíça. Participou de importantes mostras como SPArte, Coletiva Galeria Eixo (RJ), X Salão Paulista de Arte Contemporânea, Projeto Galerias (Funarte), Anual de Artes (Faap), ArtSoul, Coletivo na White Porch Gallery em Miami, entre outros. Além disso, foi citada pela revista americana Forbes e no site Artnet pela empresária Paris Hilton, como um dos novos talentos de sua geração.