A crise do novo coronavírus poderá fazer com que mais de 135 milhões de pessoas entrem em situação de fome em 2020, diz ONU em novo informe sobre a desnutrição no mundo. No ano passado, estimava-se que 130 milhões de pessoas estavam em situação de insegurança alimentar aguda e, em 2020, devido às consequências econômicas do Covid-19, esse número pode mais que dobrar e chegar a 265 milhões.
“A Covid-19 é potencialmente catastrófica para milhões de pessoas que já estão ‘por um fio’”, explicou Arif Husain, economista chefe e diretor de pesquisa do Programa Mundial de Alimentos. Segundo oficiais da ONU, África, Ásia e América Latina serão os mais atingidos. Terão desemprego, perda queda de exportação, perda de renda e crise sanitária.
O Brasil e a fome
No Brasil, o drama da fome faz parte da história e dos discursos de quem ocupou a cadeira principal do Executivo. “A fome não é um fenômeno natural. É um fenômeno social, produto de estruturas econômicas defeituosas”, afirmou, em 1946, o geógrafo e cientista social, Josué de Castro, no livro “Geografia da fome”. Mais de sete décadas depois, o país ainda não foi capaz de acabar com esse problema estrutural e dramático, e que revela as profundas desigualdades no país.
“A questão da fome é ofuscada pela culpabilização dos pobres por sua situação, incluindo o número de filhos e falta de esforço, mas a condição de pobreza é estrutural, de exclusão e exploração socioeconômica”, acrescenta o professor de ciências políticas, Vicente Faleiros. Entre os anos de 1930 a 1963, o país, que passava pelo processo de industrialização, iniciou estudos da fome e da nutrição e percebeu que a classe trabalhadora sofria pela elevada ocorrência de doenças nutricionais relacionadas à miséria, à pobreza e ao atraso econômico.
Em 2014, a luta no combate à fome teve um avanço em números. O Brasil ficou entre as 10 maiores economias do mundo e 40 milhões de pessoas deixaram a pobreza extrema. “O Bolsa Família, que ajudou a perceber a fome como um problema integral, não pode ser entendido como uma medida auxiliar ou uma medida assistencialista, ele tem que ser entendido como uma medida pública, de estado, de desenvolvimento, de criação de empregos, de criação de renda”, analisa o professor e historiador Frederico Tomé.
Isso se deve ao sucesso de programas sociais como o Bolsa Família, responsável por retirar milhões de pessoas do mapa da fome. O IBGE mostra que a desnutrição caiu 82% entre 2002 e 2013. Em 2000, de acordo com a FAO, 18 milhões de pessoas passavam fome no Brasil.
Confira como os presidentes trataram do tema fome desde o governo de Getúlio Vargas, quando os trabalhadores passaram a receber o salário mínimo:
-> Getúlio Vargas (1930 – 1945)
– Ração essencial mínima
Em 1938, por meio do Decreto-Lei n° 399, criou-se a chamada ração essencial mínima que seria composta, em quantidade e qualidade, de alimentos necessários de acordo com as necessidades nutricionais de um trabalhador adulto.
-Salário Mínimo (Decreto-lei número 2162, 1 de maio de 1940)
“Procuraremos por esse meio assegurar ao trabalhador remuneração eqüitativa, capaz de garantir-lhe o indispensável para o seu sustento e da própria família, estabelecendo um padrão mínimo de vida para a grande maioria da população.” (Parte do discurso de Vargas em 1° de maio de 1940)
– Serviço de alimentação da Previdência social (SAPS)
–Decreto-lei número 2478, 5 de agosto de 1940
-”Tinha o objetivo de assegurar condições favoráveis e higiênicas à alimentação dos segurados dos Institutos e Caixas de aposentadoria e Pensões subordinadas ao Ministério do Trabalho, indústria e comércio.”
-Criou restaurantes populares no RJ, SP e outras cidades que tinha como objetivo oferecer uma alimentação saudável e equilibrada para trabalhadores urbanos por preços acessíveis.
-Criou postos que comercializavam produtos de gênero de primeira necessidade a preço de custo
-Promoveu-se a educação nutricional, com o objetivo de formação de hábitos alimentares saudáveis
-Comissão Nacional de alimentação (CNA)
–Decreto-lei n° 7328, fevereiro de 1945
-Tinha como objetivo estudar e propor normas da política nacional de alimentação, estudar o estado de nutrição e os hábitos alimentares dos brasileiros.
-Tinha grandes vínculos com órgãos pós segunda guerra, como o Food and Agriculture Organization (FAO), United Nations International Children Emergency Fund (UNICEF), o Programa de Alimentos para a Paz, da Agency for International Development (USAID) dos Estados Unidos da América e o Programa Mundial de Alimentos (PMA)
*Por outro lado, tais programas se articulavam ao projeto de utilização do alimento como arma de dominação e da fome dos países dependentes como objeto de exploração, cujos objetivos políticos eram atenuar e reprimir os movimentos sociais de caráter socialista*
-> João Goulart (1961 – 1964)
-Primeira vez que um governo assume o discurso e a narrativa da reforma agrária: só então dava-se terras aos trabalhadores para plantar
->Ditadura militar (1964 – 1985)
No Brasil, com o apoio de organismos internacionais, como a OMS, a FAO e o UNICEF, surgem os I e II Planos Nacionais de Desenvolvimento (PND), incorporando ao planejamento econômico instrumentos de políticas sociais.
I e II Planos Nacionais de Desenvolvimento (PND)
–Decreto-lei n° 5.829
-OMS, a FAO, UNICEF e o INAN
– Programa de Nutrição em Saúde (PNS); Programa de Complementação Alimentar (PCA); Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE); Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT): suplementação alimentar a gestantes, nutrizes e crianças de zero a seis anos
– Programa de Abastecimento de Alimentos Básicos em Áreas de Baixa Renda (PROAB): nova organização do sistema de produção e comercialização de alimentos, com ênfase no pequeno produtor
*Durante esse período, principalmente entre os anos 1964-1974, mesmo com os altos números de fome e miséria no país, o discurso dos programas de combate a fome feito pelo INAN continuava forte. Em relação ao impacto dos programas nos aspectos econômicos, é importante destacar como esses programas ajudaram, mesmo que de forma indireta, para uma redistribuição de renda e certo estímulo à criação de mercado relacionado a alimentação e nutrição. *
*Estudos apontam que nesse período o número de crianças de um a quatro anos, que sofriam de desnutrição, foi de 19,8% para 7,6% e o número de adultos sofrendo do mesmo mal foram de 8,6% para 4,2%.*
->Tancredo Neves/José Sarney (1985 – 1990)
-Retorno de palavras como “fome” e “desemprego” no discurso do candidato Tancredo, abandonadas pela Ditadura
-Projetos: Plano Subsídios para a Ação Imediata contra a Fome e o Desemprego, elaborado pela Comissão para o Plano do Governo (COPAG); as Prioridades Sociais para 1985 e as Prioridades Sociais para 1986
-após entrada de Sarney, as palavras foram substituídas e as prioridades antes ditas voltaram a ser esquecidas
-restaram apenas o Programa de Suplementação Alimentar (PSA); o Plano nacional de alimentação escolar (PNAE); o Reforço Alimentar ao Programa de Creches (PNAE) e o Programa Nacional do Leite para Crianças Carentes (PNLCC)
-> Fernando Collor (1990 – 1992)
– Cerca de 32 milhões de pobres e famintos existentes no país
-extinção ou corte de custos de diversos projetos de programas de alimentação e nutrição (além disso, esses programas também se tornaram facilitadores dos desvios de verbas públicas, de licitações duvidosas e de outros mecanismos ilícitos)
-em 1990 a presidência do INAN passou para representante da Associação Brasileira da Indústria de Nutrição (ABIN), o qual passou a priorizar nitidamente os produtores de alimentos formulados, deixando de lado a alimentação básica saudável e colocando no lugar produtos industrializados.
– Por outro lado, em janeiro de 1991, o governo anunciou a extinção do Programa Nacional do leite para crianças carentes (PNLCC)
-PCA => Programa de apoio nutricional (PAN) e Centro de atenção ao desnutrido (CAD) = *extinguindo a distribuição de alimentos formulados e a criação do programa de distribuição de cestas básicas (Minha Gente ou Gente da Gente)
– No caso do Programa de Alimentação do trabalhador (PAT), que teria de priorizar o atendimento aos trabalhadores de baixa renda, observou-se que ele se manteve concentrado no sudeste e sul do país, atendendo prioritariamente as grandes e médias empresas e os trabalhadores com melhores condições de renda
->Itamar Franco (1992 – 1995)
– Plano de combate à fome e à miséria:
-Proposto em 1993 pelo Conselho Nacional de Segurança Alimentar
–direcionado a crianças desnutridas, seus familiares e gestantes sob risco nutricional.
->Fernando Henrique Cardoso (1995 – 2003)
– Programa Comunidade Solidária
– extinção do CONSEA e a criação do Conselho do Comunidade Solidária
-tinha por objetivo reduzir a mortalidade infantil, melhorar as condições de alimentação dos estudantes, trabalhadores e famílias carentes, melhorar as condições de moradia e saneamento básico, melhorar as condições de vida no meio rural, gerar emprego e renda e promover a qualificação profissional;
-Continuaram em funcionamento o PNAE; o PAT; o Programa Leite é Saúde, que passou a se chamar Programa de Combate às Carências Nutricionais (PCCN) e depois Incentivo ao Combate às Carências Nutricionais (ICCN); o PRODEA
*Em 1997 o INAN foi extinto e suas atividades transferidas para o Ministério da Saúde*
->Lula (2003 – 2011)
–Projeto Fome Zero:
-Políticas estruturais: tem o objetivo de atingir a raiz do problema da fome e da pobreza
-geração de emprego e renda, previdência social universal, incentivo à agricultura familiar, intensificação da reforma agrária, bolsa-escola, segurança e qualidade dos alimentos
-Programa Cartão-Alimentação, Alimentos Emergenciais, Estoques de Alimentos de Segurança, Educação para o Consumo Alimentar, Ampliação do Programa de Alimentação do Trabalhador, Combate à Desnutrição e Ampliação do Programa de Alimentação Escolar.
->Dilma Rousseff (2011 – 2016)
–Plano Brasil sem miséria:
-tinha o objetivo de superar a extrema pobreza no país, sempre tendo em vista que a pobreza não se resume a uma questão de renda.
-Segurança alimentar e nutricional, educação, saúde, acesso a água e energia elétrica, moradia, qualificação profissional
–Ampliação do Bolsa Família
*Brasil sai do Mapa da Fome em 2014 (Menos de 3% da população brasileira passa fome)
-> Michel Temer (2016 – 2018)
A crise econômica aumentou o desemprego e, com isso, o Brasil é empurrado de volta para o mapa mundial da fome. Entre os motivos estão a exclusão de pessoas do programa Bolsa Família e o corte no programa de agricultura familiar, que tem impedido centenas de milhares de pessoas de terem renda suficiente para comprar alimentos.
->Jair Bolsonaro (2018 – )
“Nunca haverá estabilidade social na presença de fome, violência, miséria e de altas taxas de desemprego. Todo indivíduo deveria ter as condições de fazer escolhas que permitam preservar sua vida, sua liberdade e buscar sua felicidade, além do conforto de sua família”, apontava o plano de governo do atual presidente
Mesmo com tal discurso, o presidente aprovou a redução no orçamento de ações voltadas à população mais pobre e de medidas que buscam reduzir as desigualdades no país.Entre os programas afetados estão o Minha Casa Minha Vida, o Bolsa Família e o Fies.
-Bolsa Família: A primeira proposta de orçamento do governo Bolsonaro afeta também o Bolsa Família, que transfere renda para famílias em situação de extrema pobreza.
*Ao enviar o projeto de Orçamento, o governo considerou que o Bolsa Família beneficiará 13,2 milhões de famílias. Atualmente, são 13,8 milhões.
-Auxílio emergencial de enfrentamento ao Coronavírus: Benefício financeiro concedido pelo Governo Federal destinado aos trabalhadores informais, microempreendedores individuais (MEI), autônomos e desempregados, e tem por objetivo fornecer proteção emergencial no período de enfrentamento à crise causada pela pandemia do Coronavírus – COVID 19.
Por Geovanna Bispo
Supervisão de Luiz Claudio Ferreira