O artista é um homem de cabelos grisalhos, de 51 anos. Veste roupa preta e um avental com marcas de seu trabalho. É possível perceber que estava com a mão na massa pouco antes de me encontrar devido à argila nas unhas.
“Com 7 anos eu morava no final de Taguatinga Norte e eu tinha acesso a um brejo, lá foi onde eu tive o meu primeiro contato com a argila. Eu comecei a fazer as minhas primeiras peças, lá aprendi a nadar, a fazer bonequinhos e panelinhas de barro. Foi algo espontâneo”, recorda com facilidade. Paulo nasceu em Uberlândia, mas habita em Brasília desde recém-nascido. É filho de mãe paraibana e pai mineiro, que foi um dos pioneiros da cidade na década de 1960. Ele compartilha que aos 14 anos arranjou um trabalho em uma empresa onde vende-se equipamento odontológico, e lá teve a oportunidade de fazer um curso de prótese dentária, tendo seu primeiro contato com a escultura em cera. “Eu visitava feiras, locais de artesanato e ficava encantado, hipnotizado.”
De comerciante a escultor, Paulo começou a trabalhar desde cedo. “Trabalhei com prótese dentária, em comércio carregando caixa, fui para o exército, para a PM, formei em educação física, depois em artes plásticas… Tive locadora de videogame, padaria, entrei em concurso público…” Mas foi na década de 1990, com seus aproximados 20 anos, que ele iniciou a prática contínua de cerâmica e começou a dedicar sua vida a ela. Questiona-me se conheço o Museu Vivo da História Candanga e revela ter feito seu primeiro curso com peças utilitárias de cerâmica de baixa temperatura lá. Em poucas palavras, a cerâmica conhecida por ficar “vermelhinha”.
“Eu investia em cursos, livros, não tinha internet na época. Não tinha quem ensinar. Eu comecei bem simples, sem equipamento, material e recursos. Hoje, nosso ateliê é um dos mais bem montados em nível nacional e internacional”, compartilha com orgulho ao relembrar o sucesso que conquistou com o seu trabalho. A escola Paulo de Paula, que hoje localiza-se na Asa Norte, conta com a produção das próprias massas e com maquinários e equipamentos que só são encontrados em grandes fábricas.
Mas quem vê hoje não tem ideia de como foi a trajetória para se tornar um profissional referência no Distrito Federal e Brasil afora. “Eu comecei com técnicas manuais de cerâmica. Ai depois eu comecei a experimentar a cerâmica torno, que é aquela maquininha de 1000 anos a.c. Eu sempre quero mais, continuo investindo, sedento por aprendizado.” E aí foi quando Paulo começou a fazer escultura. O artistão, como ele se denomina (junção de artista e artesão), criou seu primeiro ateliê chamado “Casa do Barro” em 1993, ainda em Taguatinga Norte. Lá, ele fazia de tudo, animais, peças de cerâmica utilitárias decorativas e trabalhava sozinho.
Identidade visual
Antes de seguir história, o “artistão” se despede de alguns alunos e puxa conversa. O ambiente da escola é agradável, até cachorro participa. Os alunos da última turma de sexta-feira levam lanches, bebidas, é uma diversão conjunta. Mas logo se dirige a mim novamente e continua o relato.
“Eu fazia de tudo mas não fazia nada, eu não tinha uma identidade visual. E aí foi quando sentado no sofá do ateliê eu olhei para uma garrafa de quase 1,8m de altura e percebi que aquilo não tinha a ver comigo. Nessa época eu já fazia peças esmaltadas de alta temperatura, baixa temperatura, técnicas sofisticadas, queimas japonesas… E percebi que tinha que fazer algo ligado a mim.” Mais uma vez Paulo cita seu pai como inspiração, o escultor conta que a partir da origem de seu já falecido pai, resolveu criar uma série chamada Zé Ninguém, que honra os trabalhadores que construíram a capital federal. “Meu pai era da construção civil, pioneiro e não tinha uma homenagem para os trabalhadores que construíram a própria cidade. Então, fiz o trocadilho de pião com peão e produzi 300 peças, hoje elas estão em uma exposição. Ali encontrei um hiato entre quem construiu a cidade, que estava no esquecimento, e os grandes artistas da capital”. Além da série Zé Ninguém, o escultor fez a série dos Guardiões, que são peças de 1,6m e representam os guardiões da cidade.
Paulo é um homem descritivo, detalhista, sempre faz questão de explicar as histórias tim tim por tim tim e relembra a importância da argila para a humanidade. “No Japão, o artesão é considerado um tesouro nacional, porque ele é parte de uma nação. Nós temos peças feitas manualmente de 20 mil anos atrás. Tudo que o homem faz evoluiu graças à cerâmica. Esses meus dentes da frente são quebrados e são restaurados com cerâmica. As paredes da sua casa, a sua louça, o vaso… Ao mesmo tempo que a cerâmica é primitiva e histórica, ela é tecnológica e futurista.”
É possível perceber uma sensibilidade na fala do artista quando ele volta aos princípios de seu trabalho. “A cerâmica é uma atividade visceral. Você se suja mesmo. E aí percebemos que não só jovens, mas adultos e idosos perderam essa magia de poder se sujar e não se preocupar.”
Ele compartilha que boa parte do que aprendeu foi autoeducação. “Uma coisa é você assistir a um vídeo no YouTube, outra coisa é você ver, ouvir e praticar. Porque essas horas que você tem de investimento de leitura, de estudo, de prática, fazem com que você se aproxime de uma excelência”. No início ele praticava cerca de 3h por dia, depois aumentou para 4h a 6h. Mas até hoje Paulo atualiza-se e busca continuar estudando e trazendo novas técnicas para a escola.
A Escola Paulo de Paula
20 anos após ter fundado a Escola Paulo de Paula, o artista percebe ter encontrado sua identidade. “O artista tem um estilo próprio de esculpir no figurativo. A jogada é conseguir encontrar a sua identidade. Eu encontrei a minha, eu acho que temos que compartilhar conhecimento, a única diferença entre eu e você é que eu comecei antes e você vai começar agora. Então a grande jogada da escola é levar uma ação artística dentro da cerâmica para dentro da estrutura da cidade, que está muito carente por espaços artísticos”, reflete.
Ele entende que o contexto político atual tem levado mais pessoas para a sua escola. “Essas mudanças do governo fizeram com que muita gente que não estava programando a aposentadoria se aposentasse. E aí há uma procura por alguma coisa para fazer trazendo muitas pessoas para a atividade manual.”
Além de Paulo, a escola conta com mais duas professoras e um funcionário que ajuda na limpeza. As aulas têm duração de 2h30 e são realizadas de segunda a sábado com 6 a 8 alunos por turma. Resumidamente, o artista explica o funcionamento da escola. Os interessados podem fechar pacotes de 4 aulas, no primeiro dia produzem de 3 a 4 peças, no segundo realizam o acabamento, no terceiro há a aplicação do esmalte nas peças e no quarto elas estão prontas.
Para quem nunca chegou a tocar em argila, não tem com o que se preocupar, Paulo esclarece: “O conhecimento da cerâmica não é como uma régua rígida, é em formato de espiral, a qualquer momento você vê tudo que está acontecendo ao seu lado e a sua frente; e se necessário você se vira e nada interfere. É um repertório de conhecimento. Nós ensinamos a técnica e os alunos fazem de acordo com o seu estilo”, conclui.
Em tempos de crise
Na época da entrevista Paulo já brincava com a questão de cumprimentar seus alunos à distância, quando chegavam a Brasília os primeiros casos da Covid-19. Agora a brincadeira se tornou frustração. A escola encontra-se fechada devido à pandemia, entretanto Paulo relata por Whatsapp que está havendo entrega de argila e insumos na casa dos alunos para que os trabalhos continuem.
O artistão também tem preparado vídeo aulas e indicado vídeos, filmes e livros para motivar os alunos. “Tudo é cíclico. A filosofia nos conduz a entender que tudo é temporário aqui em nosso plano terrestre. Temos que nos recolher. O mundo está doente”, desabafa Paulo.
Mas ainda com seu jeito brincalhão, me manda vídeos, indicações de filme e a música “O Mundo” de Zeca Baleiro: “O mundo – caquinho de vidro – tá cego do olho, tá surdo do ouvido. O mundo tá muito doente. O homem que mata, o homem que mente.”
Confira o filme “Hiato” completo produzido por Elvis Lins e Luiza Herdy (membros do coletivo SECONDS.TV) sobre o trabalho de Paulo de Paula.
Por Clara Lobo
Supervisão de Luiz Claudio Ferreira