Dois anos após um trauma. Ana*, de 19 anos, tem marcas profundas e invisíveis. Ela foi vítima de um relacionamento abusivo marcado por violência sexual e psicológica. A terapia foi o caminho para que a dor amenizasse no período chamado de ” pós-abuso “. “É sobre ter o domínio sobre a minha vida de novo”, afirma. Mesmo assim, ela ainda luta para se esquecer de uma relação que durou menos de um ano.
Ansiedade, depressão, síndrome de pânico, problemas com sono, pesadelos, transtornos alimentares e baixa autoestima são algumas das consequências enfrentadas pelas vítimas de abuso físico, psicológico ou sexual, como as que Ana foi vítima. Segundo dados do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP), durante o primeiro semestre de 2020, 119.546 mulheres sofreram lesão corporal, 9.310, abuso sexual e 1.890 foram vítimas de feminicídio. Todos esses números devem ser levados em conta que existe uma possível subnotificação em decorrência da pandemia.
Foi apenas ao deixar o ensino médio que Ana* conseguiu se afastar completamente do agressor (da mesma faixa etária). Após isso, a jovem conta ter se encontrado perdida, sem saber quem realmente era em meio à confusão que sua vida se tornou. “A terapia foi a chave de tudo para entender o que eu tinha passado e conseguir me organizar e perceber que eu realmente havia passado por aquilo.”
“A terapia foi importante para eu começar a trilhar um caminho além do abuso”, diz Ana*
De acordo com a psicóloga e psicanalista Andressa Aline Bertolla, o papel da psicologia é dar espaço para que essas mulheres falem e reflitam sobre o que passaram, de forma a elaborar e ressignificar o trauma que viveram. “Em muitos casos a mulher se dá conta de que ela está nessa relação abusiva durante a sessão.”
No mesmo sentido, a também psicóloga e psicanalista Tamara Levy afirma que não externalizar o assunto tem um enorme potencial para prejudicar e incapacitar permanentemente a vida das vítimas. Ainda assim, ela explica que, mesmo que com mais tempo de acompanhamento terapêutico, nunca se é possível voltar para o que se era antes do abuso. “O que é possível é a gente trabalhar essa vítima para dar continuidade na sua vida apesar do que aconteceu. É nessa perspectiva que a gente trabalha. Para fortalecer e reparar. Não tem como esquecer, não tem como passar por isso sem sentir nada.”
“A nossa mente não tem calendário ou relógio. A dor que se sente hoje é a mesma dor que sentimos naquela época. É dessa dor, é desse machucado, é desse trauma que a gente precisa falar”, afirma Tamara Levy, psicóloga e psicanalista
Abuso psicológico
Abuso mais silencioso e menos abordado, o psicológico pode englobar ameaças, intimidações, agressão verbal, constrangimentos, humilhações e manipulações. Segundo dados de 2017 do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde, houveram 78.052 casos de violência psicológica, com 81% desse número sendo mulheres.
“Eu nunca vou esquecer o que aconteceu e nem quero, é a minha história”, diz Ana
Dessa forma, Andressa Bertolla alerta que se deve ter atenção extra para sinais de abuso psicológico. “Então, geralmente, começa com a violência psicológica, que é uma das mais difíceis de ser identificada, a própria mulher, quando chega para o atendimento com a gente, não consegue identificar se ela está passando por um relacionamento abusivo porque não tem violência física.”
“Eu diria que a violência psicológica acaba deixando rastros bem maiores que da violência física, porque ela engloba muitas questões”, diz Andressa Bertolla.
A culpa
A terapia, segundo Tamara Levy, também serve para mostrar para as vítimas que elas não têm culpa de nada do que passaram. “Quando chega a esse ponto do abuso sexual e violência psicológica e até a permanência nesses relacionamentos abusivos, parece que o sentimento de culpa triplica. E quando isso não é falado, parece que a vítima não é vítima, mas sim cúmplice do agressor.”
Tamara Levy ainda reforça o papel do acompanhamento psicológico no pós-abuso. “Em algumas ocasiões, a história precisa ser repetida diversas vezes para que a vítima perceba que ela não tem culpa do aconteceu e que o culpado é o agressor.”
Segundo Tamara, muitas das vítimas, principalmente de abusos sexuais, ao procurarem atendimento psicológico já não têm vontade de denunciar. “As vítimas que não fazem a denúncia e procuram o atendimento psicológico podem pensar que já se passou muito tempo, ou que não tem interesse em denunciar por diversos motivos. Às vezes (o agressor) é uma pessoa da família, às vezes é uma pessoa conhecida, ou uma pessoa que não está mais no convívio.”
Libertação
Há um ano e oito meses fazendo terapia, Ana* conta que tem dias bons e dias ruins, mas que foi por meio do acompanhamento psicológico que ela reencontrou sua liberdade. “Eu acho muito importante nós falarmos do pós-abuso, porque nada compra ou vale esse sentimento de libertação, de saber que o meu agressor não tem mais poder sobre mim e que eu posso escrever a minha história, eu posso conduzir os meus caminhos, mesmo com todos os meus traumas.”
“É sobre ter domínio de novo sobre a minha vida, é sobre não ter medo de contar a minha história”, diz Ana*
Ana* acredita que o momento pós-abuso é o crucial para a recuperação das vítimas. “É nele que você vai entender o que passou, entender que você é uma sobrevivente. O pós-abuso é um dos momentos mais delicados, mas também um dos mais importantes para como vai ser conduzido o resto da vida dessa pessoa.”
“Só quem passou por um abuso sabe do que eu estou falando, que nós somos sobreviventes”
Ana* faz um apelo ao pedir que as pessoas não virem as costas para as vítimas. “É muito importante principalmente manter contato com as pessoas que sofreram abuso. Tentem manter contato com elas, deem suporte, porque é um momento que nós estamos mais frágeis, é um momento que estamos tentando formular o pensamento e organizar tudo.”
Atendimentos gratuitos
Andressa Aline Bertolla compõe o coletivo de mulheres psicólogas e psicanalistas Escuta Ética, que atende mulheres de todo Brasil gratuitamente ou com preço social. O que nasceu como uma ideia para atender mulheres que estavam passando por questões relacionadas à vulnerabilidade pelo Covid-19, se tornou um projeto que hoje, além de oferecer atendimento psicológico, também presta serviços jurídicos para mulheres que passaram ou passam por abusos e violências.
Igualmente, o Governo do Distrito Federal oferece plano terapêutico voltado para vítimas de abuso físico.