Baixinha, elétrica e com sorriso contagiante escondido por trás da máscara, mas que transbordava pelos olhos cheios de lágrimas, ela desceu do carro e foi logo fazendo um comentário ao entrar no Cine Brasília. “Já vi os filmes, mas estou aqui hoje só para matar saudade, quero ver a sala, a tela de cinema, os funcionários, o pipoqueiro e, principalmente, gente que gosta de cinema”, disse, sem esconder a emoção, Berê Bahia, pesquisadora baiana que tem uma relação quase umbilical com aquele espaço desde o final dos anos 1970.
Há quase dois anos fechado por conta da pandemia, esse que é o santuário da sétima arte da capital que reverbera para os quatro cantos do país, o Cine Brasília reabriu na noite de quarta-feira (6) com exibição de filmes egípcios. A mostra, com seis títulos vindos do país das pirâmides e faraós, segue até este domingo (9). No hall de entrada, os visitantes também podem conferir a exposição de 20 cartazes de filmes que fizeram parte do Festival de Brasília ao longo de sua trajetória.
A entrada é gratuita, mediante doação de 1 quilo de alimento não perecível. Todos os cuidados foram tomados para receber o público, com vários totens de álcool em gel espalhados pelo ambiente e uso de máscara obrigatório. Com capacidade de público reduzido pela metade, 303 pessoas, o reencontro com o querido cinema, um dos últimos de rua do país, foi uma experiência exultante para muitos.
“O Cine Brasília é a casa do cinema brasileiro; para mim, a extensão da minha casa. Não é só a questão física, sabe, mas também emocional, cognitiva, de ver as pessoas, sentir o ambiente”, continuou Berê Bahia, que não pisava no local desde que o espaço foi fechado por conta da pandemia. “A última vez que estive aqui foi em 2019, no Festival de Brasília, e não voltei mais. Então pensei, vou lá ver o meu povo, dar uma volta ao redor do prédio. Quando acender aquela luz naquela tela maravilhosa, vou sonhar cheia de esperança pelo nosso país”, disse.
Entre os dias 13, 14 e 15 deste mês, haverá uma atração especial, a pré-estreia do filme nacional Eduardo & Mônica, de Renê Sampaio
De férias, mas no Cine Brasília como espectador comum, o secretário de Cultura e Economia Criativa, Bartolomeu Rodrigues, comentou a relevância histórica do momento. “Estamos fazendo todo o esforço para que este, que é um patrimônio da cidade, de todas as pessoas que gostam de cinema, volte à atividade com toda a sua força, pujança, com toda a sua tradição”, salientou. “O Cine Brasília é um ambiente especialmente dedicado ao cinema de arte, à expressão do cinema como a sétima arte no seu sentido mais puro. Estamos apenas esquentando as baterias com essa mostra de filmes egípcios”, antecipou.
Programação planejada
É verdade. Isso porque uma programação já foi planejada para os próximos 90 dias no Cine Brasília, com a exibição de produções de países como Bielo-Rússia, Argentina e Coreia do Sul, escola cinematográfica que está em voga. Em breve, com ajuda das embaixadas, uma mostra de filmes ibero-americana será realizada no local abarcando obras de quase 30 títulos de língua portuguesa e espanhola.
E tem mais. Entre os dias 13, 14 e 15 deste mês, uma atração especial, a pré-estreia do filme nacional Eduardo & Mônica, de Renê Sampaio, cineasta carioca que começou carreira em Brasília e com vários prêmios abiscoitados, inclusive, no palco do Cine Brasília. O longa, aliás, marca sua segunda incursão ao universo do ídolo Renato Russo, na história de amor entre o “boyzinho que tentava impressionar” e a “menina com tinta no cabelo”, personagens símbolo do DF. Antes, o diretor verteu para as telonas o épico urbano Faroeste Caboclo.
“O Cine Brasília estava com saudade do público, a casa é de vocês”, comentou o secretário executivo da Secretaria de Cultura e Economia Criativa, Carlos Alberto Jr., antes da exibição do filme de abertura da Mostra de Cinema Egípcio, Mawlana, de Magdi Ahmed Ali. “Durante todo esse tempo em que o cinema estava fechado, o preparamos para receber o público, melhorando questões como a de acessibilidade, sobretudo das pessoas com deficiência”, frisou.
Saudade nunca mais
Moradora da quadra 107 Sul, ou seja, bem do lado do Cine Brasília, a aposentada Wera Rakowitsch, 70 anos, não via a hora de o espaço afetivo ser reaberto. Apaixonada por cinema, confessa que estava cansada de ver filmes no confinamento do seu lar, refém das programações da plataforma de streaming.
A saudade do espaço foi externada por meio de uma declaração de amor curta e simples: “A gente ama o Cine Brasília”, declarou. “A gente sabia o motivo de ele estar fechado, mas era uma tristeza. Estamos muito felizes com a volta do Cine Brasília, que é um espaço bárbaro, fundamental para a cultura da cidade”, avaliou.
Para a historiadora Thaís Teodoro, 27 anos, a alegria de ver o lugar que a moldou para ver filmes “diferentes” e “ousados”, “vindos de vários cantos do mundo”, é um sonho realizado. “Frequento o Cine Brasília desde os 17 anos; é um lugar delicioso de frequentar, bem-localizado, próximo às quadras e com uma programação bem especial”, contou. “Só de não ter que ir ao shopping para ver filmes, é uma maravilha”, ironizou.
Realizadora do docudrama Dulcina, atriz e diretora de teatro que criou em Brasília o espaço Dulcina de Moraes, uma referência na formação de atores da cidade, Glória Teixeira também marcou presença na reabertura do Cine Brasília nesta quarta-feira (6). A cineasta sentiu na pele os efeitos da pandemia, que prejudicou o lançamento do seu projeto, finalizado em 2019. “O meu trabalho não foi para as telas por causa da pandemia, o que é uma tristeza”, lamentou. “Mas hoje, fiz questão absoluta de vir aqui na reabertura para curtir essa alegria de ver novamente filmes exibidos na tela do Cine Brasília”, revelou.
Um dos funcionários mais antigos da Secretaria de Cultura e Economia Criativa (Secec) , o projecionista Carlos Camurça é o homem responsável por colocar os filmes na tela mágica do Cine Brasília. Desde o início dos anos 90 é o senhor das projeções do espaço, refletindo, no gigante pano branco da sala, sucessos como Lavoura Arcaica (2001), Amarelo Manga (2002) e tantos outros. Não via a hora de voltar ao seu cantinho de trabalho. “Eu estava agoniado em casa, querendo retornar”, recordou. “Estamos voltando em grande estilo; é com muita emoção que vejo a volta do espaço”, resumiu.
História
O Cine Brasília nasceu com a cidade. A primeira sessão foi realizada um dia depois da inauguração da nova capital, em 22 de abril de 1960. Bem-localizado, o espaço faz parte do projeto arquitetônico modernista desenhado por Oscar Niemeyer, integrando a memória afetiva dos brasilienses e de representantes da classe cinematográfica brasileira como símbolo cultural local. Um dos últimos cinemas de rua do DF, o Cine Brasília ganhou missões mais nobres – entre essas, a de valorizar a exibição de produções nacionais.