Participar de uma caravana humanitária da FSF para Madagascar, em setembro do ano passado, me trouxe inúmeros aprendizados indeléveis, além de histórias marcantes e impregnadas de inspiração.
A protagonista de uma destas histórias nasceu no interior de São Paulo, numa cidadezinha chamada Elias Fausto, com pouco mais de 17 mil habitantes, a cerca de 140 km da capital paulista, na região de Campinas.
Aos 14 anos, fez as malas e partiu rumo a Botucatu (SP), onde morava sua avó. Lá ganhou uma bolsa de estudos que, três anos depois, influenciaria no seu ingresso para o curso de Medicina, da Universidade Federal do Triângulo Mineiro.
“Sabia que queria cursar a faculdade de Medicina; e que este seria um caminho difícil, mas necessário”, conta Janaíne Camargo de Oliveira, a médica, especialista em Medicina de Família e Comunidade, que conheceu a Fraternidade sem Fronteiras em 2014, por meio do presidente fundador da instituição, Wagner Moura. Num estande da FSF, em um congresso médico espírita, em Goiânia, eles se conectaram pelo propósito de servir e edificar um mundo em que a fraternidade não tivesse fronteiras. “Comecei a apadrinhar um dos projetos e, alguns anos depois, tive a oportunidade de viajar para conhecer mais de perto o trabalho”, detalha.
Foi só em fevereiro de 2018 que Janaíne participou de sua primeira caravana para Moçambique, de onde surgiriam os sinais mais evidentes de que a sua missão (de servir ao povo africano) só estava começando.
Um ano depois, viajou mais de nove mil quilômetros para conhecer o trabalho realizado pela ONG na ilha de Madagascar e, desde então, segue firme, de lá, num esforço hercúleo de tentar minimizar o sofrimento de uma população esquecida pelo poder público e, não seria exagero dizer, pela humanidade.
De uma simplicidade sem igual, cuja marca registrada são os óculos, a camiseta da FSF, os cabelos cacheados na altura do dobro e o sorriso de orelha a orelha, a médica de 32 anos tem uma responsabilidade enorme nas costas: manter viva a chama do trabalho iniciado na maior ilha africana, desde 2017, pela FSF. “Wagner disse uma vez que buscamos construir um mundo em que não encontremos uma miséria tão violenta. Acho que é isso… Cada vez que uma criança morre por desnutrição ou diarreia, um pedacinho da nossa humanidade morre junto. Estamos aqui para auxiliarmos no desenvolvimento das comunidades e reduzirmos a desnutrição e mortalidade infantil. Isso também é cuidar do humano em nós. Estarmos diante do sofrimento e nos dispormos a ampara-lo nos torna profundamente humanos. Nos torna capazes de amar e sermos amados de forma simples e genuína”, resume.
Para ajudar no trabalho, Janaíne escalou pessoas simples da região, que foram treinadas para dar-lhe suporte no atendimento às famílias. É a mãe que vira cuidadora; o pai que cumpre o papel de farmacêutico; o tio que fica na portaria e ajuda na limpeza. Tudo dentro do mais profundo espírito de cooperativismo, que tem como sustentação a filosofia Ubuntu, que se vale da premissa de que “eu sou porque nós somos”. Em outras palavras, na visão do povo malgaxe (e africano, de modo geral), é o coletivo que importa.
Só para se ter uma ideia, em um dia de funcionamento normal, a clínica liderada por Janaíne atende cerca de 150 pessoas. São consultas clínicas para todas as idades, cuidados com crianças menores de dois anos, vacinação, supervisão de desnutridos, tratamento nutricional diário, pré-natal, planejamento familiar, cuidado de doenças crônicas em adultos, estimulação neurológica e fitoterapia, além de acolher mais de 45 pessoas em internações por mês.
Além disso, a equipe conta com mutirões de avaliação de crianças de dois a cinco anos nas comunidades e escolas da redondeza, além de ações comunitárias de rastreamento de desnutrição.
No momento, Janaíne conta que, em função da Covid, foi reduzido o atendimento no polo de trabalho da FSF, em Ambovombe, para cerca de 60 pessoas por dia e não estão sendo realizados, momentaneamente, os mutirões. Por outro lado, os agentes comunitários seguem, em visitas domiciliares, supervisionando as crianças de dois a cinco anos já cadastradas. Tudo com muito amor e carinho.
Na prática, a equipe da médica paulista realiza desde partos até cuidados paliativos no final da vida. “Esta é a essência da Medicina de Família e Comunidade”, explica.
Segundo ela, esta é uma especialidade que defende um modelo de saúde que olhe a pessoa de modo integral (um ser complexo do ponto de vista biopsicossocial espiritual), que considera as necessidades específicas de cada população assistida em seu contexto e que busca desenvolver ações efetivas, baseadas no equilíbrio entre a ciência e o vínculo com o paciente. “Com isso, buscamos organizar o serviço dirigido para a atenção primária à saúde, com um olhar ampliado para o cuidado em saúde (integral), educação em saúde, prevenção de doenças e cuidado longitudinal (ao longo do tempo)”, fundamenta.
Conviver por cerca de dez dias com Janaíne me fez entender que não basta ter qualidade técnica para atuar, de uma forma transformadora da realidade, no mundo. É através do aprofundamento espiritual que tudo flui.
Me emocionei, diversas vezes, ao longo da viagem, com a sensibilidade da Janaíne. Largar a família, o namorado, os seus demais projetos profissionais para se doar integralmente ao outro, definitivamente, é para poucos.
Uma de minhas lembranças mais marcantes da Caravana à Madagascar foram as noites, em que nos reuníamos na clínica com as crianças para cantar, dançar e orar, tudo regido por ela, que faz questão de manter, no dia a dia, a prática de meditação com os pequenos.
Definitivamente, nunca mais fui o mesmo depois de Madagascar. À médica (e ser humano de rara espiritualidade) Janaíne, minha gratidão, por me inspirar tanto com sua liderança, resiliência, amorosidade, doçura e capacidade de fazer a diferença na vida de tantas pessoas. Inclusive, na minha!
*Flávio Resende é jornalista, padrinho do projeto Ação Madagascar, voluntário da Assessoria de Comunicação da FSF e entusiasta de iniciativas de impacto social e voluntariado.